Um dedo de prosa

Germana Telles

Banzo 12:44

Menino quieto só pode estar doente ou aprontou alguma travessura. Essa era a regra dos adultos nos anos de minha infância. E era bem difícil lidar com essa lei torta, pensávamos nós. Afinal, o que mais valia a pena: ser arteiro ou obedecer todas as ordens dos mais velhos? Sim, porque aqueles que saíam da linha eram sempre pegos, de uma forma ou de outra, recebendo algum castigo. E os que mostravam o banzo do vento Nordeste, fatalmente eram levados à casa do pinhão roxo. Era lá que morava seu Biu, o benzedeiro.


Ali moravam todos os mistérios e temores do mundo. Pequena, mal aprumada no pau-a-pique, com palhas sobre as ripas frágeis, teto quase tocando o chão. Na soleira, troncos de coqueiros descascados, cobrindo o barro vermelho do piso tosco. Embaixo do barro do chão deveriam se esconder todos os segredos da cidade, colhidos pelas rezas fortes.

Gatos, dois cachorros magros e muitas galinhas no terreiro, cercado pela plantação do pinhão roxo, usado para arrancar os males de qualquer cristão.


O banzo, sem querer me encontrou um dia. Não comia, perdi o viço, os ossos saltavam à pele, diziam as comadres de minha mãe. Dona Iracema, preta velha - que me fazia todas as vontades e me dava torrões de café com açúcar nos fins de tarde – pediu e foi atendida. Seu Biu era o remédio.


Busquei o topo da goiabeira. Meus irmãos me encontraram e me entregaram de bandeja. As batidas em meu peito explodiam nos ouvidos, na testa, na palma da mão, nos pés. O banzo só piora, o banzo só piora, leva logo minha comadre. Ouvi a romaria por todo o caminho.

Entrei quase arrastada, mais de medo que de doença. Fechei os olhos e senti o bafo quente do fumo de rolo invadindo meu rosto. Tossi e abri os olhos. Um enorme chapéu tomava todo o espaço do casebre. Dele surgia o rosto caboclo, perfurado, com poros enormes, talhos profundos esculpidos pelas rugas. Aquela mão crespa, descomunal, de unhas marrons, tocou rapidamente meu rosto. “Não tenha medo, menina-nova”. O que veio depois parecia ser dito em língua de outro mundo. O pouco que entendi, enquanto o pinhão roxo lambia meu corpo, jamais esqueci.


“Todo o mal, seja macumbeiro e seja feiticeiro, saia do teu corpo pelas mãos de Deus. Todo o mal, seja macumbeiro e seja feiticeiro, saia do teu corpo pelas mãos de Deus”. Em seguida, vinha o refrão afinado das comadres de minha mãe: “Amém, Amém”.

Aquilo deve ter durado menos de meia hora, mas para mim foi a eternidade. O pinhão, depois de balançado, batido, maltratado, murchara. “Olhado forte na menina quebrou todo o pinhão. Mas a coisa ruim foi embora. Banho de lavanda e mingau de milho”.


De vez em quando o banzo do mundo tenta me pegar. Espanto o quebranto com as lembranças, com os amigos e mingau de milho. E, sempre que posso, tento trazer de volta a pureza de minha gente simples, que desconhecia completamente os verdadeiros males do mundo.

Meia-noite 13:21

Dizem que as crianças são puras, ingênuas. Penso que sabem tudo e escondem o jogo, para que possam desfrutar em paz dos melhores anos de suas vidas. Dizem também que os cachorros são companheiros, leais. Os gatos ariscos e os cavalos misteriosos. Mas nada dizem das cabras. Sim, sim, as cabras. Com uma delas aprendi que os bichos nos mantêm cativos, e não o contrário.

Morando numa cidadezinha do interior pernambucano - onde o apito da usina de açúcar mantinha a vida dos moradores sob controle e os banhos de rio eram o melhor programa do fim de semana - meus companheiros de brincadeiras eram os filhos dos marceneiros, pedreiros e aboiadores.


Nossa rotina era escola, campinho tomado de lama perto da linha do trem, bolas de gude, piões, pipas e circos improvisados no quintal de casa. Meninos e meninas desempenhavam o mesmo papel: o de exercer a liberdade plena.

Um dia, porém, a cabra do vizinho deu cria. Rebuliço geral. Larguei as sandálias de borracha, esqueci tudo e corri para ver. De dentro da bolsa rosada, vimos a cabeça abrir caminho. O dono dos bodes e cabras, que dividiam a rua conosco durante o dia, ajudou o filhote. Fêmea, preta, com uma mancha branca em forma de nuvem na testa. Pernas tortas e frágeis. Tratou de ficar de pé. Quis, no mesmo minuto, ela para mim.

“Por favor, eu como tudo, durmo cedo, vou para a escola sem chorar e nunca mais brigo na rua”, prometi em casa. A ladainha durou dias. Meus apelos foram ouvidos. Voltei da escola e passei na garagem de tábuas úmidas onde ela morava. Não estava mais lá. “Foi vendida”.

Entrei na cozinha com a gola do uniforme encharcada. Culparia meus pais até o fim dos meus dias pela maldade de me afastar dela. Meu lamento não durou cinco minutos. Um berro estridente e fino chamou minha atenção e me levou ao quintal. Lá estava ela. Amarrada, com sino de latão no pescoço, tentando se livrar da corda entre saltos e balançar de cabeça, agitada.

Meia-noite, batizei. Chamava e ela atendia correndo. Levei para o campinho e surpreendeu nas roubadas de bola, enlouquecendo os meninos – que tentavam ensinar o truque aos seus tolos cachorros. Esperava minha chegada das aulas feito cão de guarda. Ao primeiro sinal de meus passos na esquina, apoiava as patas no muro e berrava. Foi assim por quase três anos.

Num sábado, igual a todos os sábados, fizeram almoço de despedida da cidade em nossa casa. Pai transferido para a capital. Vida nova. Festa. Vizinhos, colegas da repartição, parentada.
Estranhei o silêncio no quintal. Corda jogada num canto. Baque no peito. “Ela fugiu”, me disseram. “E não teremos como procurar. Mudamos amanhã”. Chorei a viagem inteira. Pensava que ela voltaria e encontraria tudo vazio, sem ninguém. Sofri por mim e por ela.

Anos mais tarde, numa conversa informal de domingo - enquanto saboreávamos o bode na brasa em casa – me contaram a verdade. “Você comeu a Meia-noite no almoço de despedida. Não havia como trazer”.
Meus vinte e poucos anos não adiantaram de nada. Fechei os olhos, corri para aquele quintal, naquela casa de cidade pequena, soltei a corda e deixei que fugisse. “Desculpe, minha filha, não havia como trazer”, repetiram. “Ela veio, ela veio”, disse em meio a um sorriso desbotado. Perdoamos.

Manga com leite 13:10

Misturar manga com leite pode fazer mal. Assim como tomar banho depois do almoço, lavar cabelo em noite de lua cheia, vestir a roupa pelo lado avesso. Crendices que regem a vida e vão nos ensinando, sob o carinho das mães e avós, a ter limites. Demorei a tomar manga com leite e ainda hoje vou guiando meus passos segundo o que me ensinaram em casa.

Por via das dúvidas, por exemplo, não corto encruzilhadas, não passo embaixo de escadas, não vou nadar depois do almoço. Se uma coruja pia perto de casa, bato na madeira, peço proteção aos céus. Se alguém engasga, apelo para São Braz, levanto os braços e acredito ter salvado a vida do cristão afogado. Tem coisas que são assim, não saem de nós e vão moldando nosso caráter, desenhando nosso destino.

Entre as coisas que ficaram em mim, grudadas entre a pele e a alma, está o meu modo de olhar o ser humano. E, falando muito sério, não consigo achar que um carro do ano possa valer mais do que um bom amigo. Não consigo entender como há quem meça o valor de gente como quem põe preço num saco de farinha.

Dia desses, lá em casa, me falaram que preciso ter mais ambição nessa vida. Que o mundo não gosta de quem gosta do mundo. Eu não sei não. Prefiro mesmo apostar no que me ensinaram. Eu gosto de gostar das pessoas. Claro que não é qualquer um que atravessa minha intimidade. Dou preferência a quem me encara e me enxerga. Compro briga por quem tem os pés no chão e conhece a textura da areia fina. Argumentando com a pessoa que tentava me dar mais rumo na vida, contei a história de Maria e seus sapatos finos.

Ela colecionava mais de oitenta pares. Botas, sandálias, tênis, altos, baixos, pretos, brancos, coloridos... Tinha um orgulho, a moça, de seus sapatinhos... Um dia, olhou meus pés e queixou-se do meu velho tênis esfolado. Mas ele está em meus pés, criatura! O que te incomoda? "Não parece com você e não vai lhe levar a lugar algum", argumentou. Não tentei lhe dizer o que pensei, naquele momento. Palavras ao vento, apenas.

Voltei para casa tentando entender como alguém poderia viver assim: num relacionamento apaixonado com oitenta pares de sapatos. Eu, com meu tênis surrado, andei em mil estradas, fiz mil amigos e estiquei minha história. Ela não pisou solo algum além dos limites de seu quarto. Desde aquele dia, não a procurei mais. Não daria certo levar adiante aquele convívio. Somos feitas de massas distintas, moldadas por oleiros bem desiguais. Dei razão à minha mãe, minhas tias e minha avó. Não se deve misturar manga com leite. A mistura pode ser bem ácida e pode fazer mal.

A descoberta do mundo 14:40

Eu só queria andar de bicicleta. Esse foi o argumento repetido dezenas de vezes enquanto os adultos me sabatinavam, pediam explicações e me acusavam de quase matar minha mãe do coração. “Menina sem juízo. Quer matar todo mundo de susto?”. Mas eu só queria andar de bicicleta...


Coração desbravador, desde menina, me levava a deixar os adultos completamente desorientados. Meu desejo era ganhar as ruas, dobrar esquinas, ver quem estava do lado de lá. E eu sempre dava um jeito de escapar, de fazer a mochilinha e me jogar. Mesmo quando dentro dela iam bonecas, panelinhas, gibis e bolachas. Aquela foi a primeira fuga. Esperei que todos fossem se ocupar de suas coisas e aprontei minha lancheira. Ouvi as recomendações de minha mãe à minha prima Tereza, que me cuidaria por algumas horas, e fiz meu papel de anjinho.


Prometi obediência e me plantei em frente à televisão. Bastaram alguns instantes de distração e driblei Tereza. Corri ao portão, sentei na calçada e esperei. Todos os dias o padeiro passava de bicicleta, entregando as encomendas da vizinhança. O cesto enorme me chamava. Eu queria ir com ele, entregar pão, ganhar sorrisos e conhecer toda a cidade. Ouvi a sineta da bicicleta ao longe e me preparei.


Conferi se ainda não haviam dado por minha falta e acenei. Ele parou. “Sua mãe não pediu pão hoje”. Nem esperei mais nada. “Me leva com você pra passear? Eu pedi e já deixaram”. Quem poderia prever que aquele anjinho de candura estaria faltando com a verdade? Também não havia como imaginar que o padeiro fosse levar uma criança que pede carona na calçada, agarrada a uma lancheira.


Encontro de impossibilidades com a sorte e em segundos eu já estava entre sacos de pão, dentro do cesto de entrega. Foi a viagem dos sonhos. Vendo minha satisfação, ele aumentava as pedaladas e sorria. Fiquei responsável pela entrega. Parávamos, eu teria que dar boa tarde, deixar o embrulho e desejar boa refeição à família.


Criança aprende rápido. Assim, fui a mais eficiente das ajudantes de padeiro das redondezas. E a mais feliz também. No fim da tarde o frio do sertão chega a doer. Serração caindo, hora de ir para casa. “Me deixa na esquina”, pedi. Desci e assim que ganhei nossa calçada percebi o tamanho da encrenca que me esperava.


Carro de polícia, ambulância e praticamente a cidade inteira no portão de minha casa. “Olha ela alí!”. Eu realmente estava em apuros. Pensei em correr, voltar pro cesto do pão, ganhar o mundo e nunca mais voltar. Foi quando vi Tereza, aos prantos, vindo ao meu encontro. Não fui castigada como pensei. Só ganhei abraço apertado e ouvi preces de agradecimento a todos os santos e anjos. Burburinho dos vizinhos crescia a cada tentativa de explicação minha. Pai e irmãos tentando acalmar minha mãe, que ainda não acreditava que eu estava em casa e sem um arranhão. “Eu só queria andar de bicicleta”, repeti.


Queriam mandar prender o padeiro, saber por onde ele havia me levado, fizeram mal juízo do moço, foi um Deus-nos-acuda. Chorei, roguei, contei da maravilhosa aventura dentro do cesto do pão, assumi a culpa. Mesmo assim, o rapaz foi interrogado. No fim, tudo foi esclarecido e no dia seguinte não vi mais a bicicleta passar. Nem no outro, nem qualquer outro dia.

Deixamos a serra alguns anos depois e nunca mais voltei por lá. Queria dobrar novamente aquelas ruas, passar pelo portão, pela calçada que viu minha estréia na descoberta do mundo.


Sou uma apaixonada por gente, por esquinas, por estradas. Adoro vencer as impossibilidades e me lançar à sorte que a vida oferece. Foi assim que ganhei os melhores amigos que alguém pode ter. Assim pude desfrutar de lugares, saborear sotaques e pratos fartos. Aprendi, dentro de um cesto de pão, a bater à porta, deixar algo de bom com quem me recebe e desejar bonança aos que me dão sorrisos.

Entre a terra e as estrelas 14:33

Naquele ano nós decidimos não fazer grande ceia no Natal. Por motivos nossos, meus pais nos consultaram sobre o que pensávamos e concordamos com eles. Nostalgia imperando em casa, comemos cedo, vimos a programação da televisão e nos rendemos aos pijamas antes das dez badaladas noturnas.


Sabia que a praça estaria cheia àquela hora, para a celebração da Missa do Galo. E o grupo de sempre estaria desfilando as roupas novas, festejando os presentes e as férias de verão. Eu sabia e queria também estar lá, mas como nos anos anteriores, feliz. Não fui. E deitei para dormir depressa.


Entre o primeiro e o segundo sono, pedrinhas na janela incomodaram. Tentei ignorar. Mais e mais pedrinhas. Chuva de pedras.

Quase ganho cicatriz na testa. O coro desafinado mais lindo que já vi, entoando um Noite Feliz partido em risadas. Eram eles. Todos juntos, vestidos de festa, vindo me buscar.


Aquele foi um dos mais felizes entre tantos natais. Vesti rápido a roupa nova, pedi a bênção e ganhei a rua com eles. Onde passávamos, cantávamos juntos. E a fonte que fazia jorrar sorrisos era inesgotável. Nunca vi tanto assunto, tanta fome de alegria, tanta gana de ser e fazer feliz.


Éramos 15 aprendizes do destino, ligados pela amizade que unia nossos pais e pela força que nos juntava, em qualquer circunstância da vida.

Naquela noite, fomos à missa, lotamos a pizzaria, visitamos conhecidos e decidimos terminar nossa festa na praia. Jogamos futebol e caímos no mar, encharcando as roupas novas com água salgada, para o desespero de nossas mães.


Para mim, mesmo depois de 20 anos, nada abalaria aqueles meninos e meninas _ que supunha viverem guardados num espaço alternativo, mantendo intactos os sorrisos, a ingenuidade e a vida plena, sem máculas, sem riscos, sem fim.


Seríamos eternos, naquelas ruas de paralelepípedos. Não deixaríamos de passar embaixo dos castanheiros, com pressa e medo de assombração. Teríamos todos os caminhos abertos ao nosso desejo de ganhar o mundo. Nossas casas conservariam o tom da tinta fresca, renovada a cada fim de ano. Nossas portas ficariam sempre abertas, esperando os amigos. Nossos pais sempre estariam deitados, à nossa espera, nos fins de noite. Aniversários, natais, carnavais, páscoas, bailes, festas de ruas, batizados. Tudo seria eterno, naquele arruado de interior.


Lembrei desse Natal, em pleno mês de março, porque essa semana recebi a notícia de que nosso grupo começou a se partir. A ciranda perfeita perdeu um par de mãos e metade da alegria com a despedida de alguém.


Fomos pegos de surpresa e tomamos ciência: não somos imortais. Alguém vai embora aos 39 do primeiro tempo, sim. Alguém que incendiava os dias com energia intensa. Que nos puxava e nos levantava do chão, se ensaiássemos um tombo.


Podem dizer que ela foi embora, que não volta mais, que não terei mais pedrinhas na janela nem gargalhada brincando na rua. Eu sei que terei. Porque tenho certeza de que aqueles meninos e meninas hão de viver para sempre, nos anos guardados pelos anjos, nalgum lugar entre a terra e as estrelas.

A dona da história 14:30

Éramos mais que vizinhos, naquela rua larga onde morávamos três meses por ano, durante as férias de verão. Havia algo que nos ligava, não só por afeto ou camaradagem. A paixão pelo lugar, a cumplicidade em correr de madrugada à praia para ouvir o batuque do candomblé e saudar Iemanjá nas noites de lua, os acordos para ver o nascer do sol - sem "ter nem pra quê" - as buscas por lenha no coqueiral, em tardes mornas. Talvez fossem as caças às tanajuras nos dias de sol com trovoada, os banhos de mar ao entardecer, os almoços coletivos nos quintais, cozidos em fogões a lenha. Podiam ser também as cantorias das comadres, cada uma em seu quintal, soprando o calor e as dores. Há quem diga que eram os abraços apertados e sem jeito nos aniversários, nas viradas de ano, nos nascimentos dos filhos, nas avistagens dos barcos chegando do alto-mar, com maridos sedentos, cansados, carregados de peixes e saudades.


Ninguém define, até hoje. Sabemos, porém, que éramos mais que vizinhos. E ela, senhora daquele arruado, era um mito para mim. Cansados dos folguedos diurnos, jantávamos cedo e esperávamos o primeiro sinal: o lampião aceso no terreiro avisava que ela abriria a roda de causos. Troncos vencidos de coqueiros mortos, tombados no terreiro central, eram os bancos - onde meninos, mulheres, velhos e jovens se acomodavam. Rua à meia-luz, cortada pelos candeeiros tímidos nas casas, onde a única eletricidade presente vinha do peito de cada um, tremente, descompassada, à espera. Ela então começava: foi assim, eu vi, ninguém me contou não. E desenrolava o novelo bem alinhavado de cenas. A cabra alada era nossa velha conhecida.


Fruto de uma ingratidão de filha, que não respeitou a carne de sua carne e ousou bater na própria mãe. Castigo divino: virar cabra em noites escuras, voando perdida pelas ruas da cidade. Diziam que durante o dia era a mulher mais linda do vilarejo. Mas o cansaço das peregrinações assombrosas tirava a força de desfrutar a vida. E ela só dormia, todo o dia, o dia inteiro. Entre uma história e outra, deixava seus ouvintes petrificados com seus arrepios gelados, mudando o tom da voz, grave: um irmão do outro mundo acabou de passar por aqui. Boa noite, irmão.


Murmúrios, sinal da cruz, chapéus ao peito. Quando se empolgava ou se perdia no enredo confuso, inventado e recriado um milhão de vezes, soltava o bordão: “lai vai, lai vai, lai vai...pei, pei, pei...e foi aquele pandimonho...”. Em minhas últimas férias, já morando no sul catarinense, fui visitar o canto dos meus verões. No lugar dos troncos, bancos de praça. Rua cheia de luzes de mercúrio. Bati à porta. Caminhando com dificuldade _ arrastando uma perna doente, apertando os olhos para reconhecer a visita _ vi se aproximar de mim a velha cabocla, encorpada, de vestido largo.


"Meu Deus, não é que o mundo não se acaba mais?" Renovamos nosso abraço e ficamos assim, por bom tempo, esmagando a saudade. Falei que agora moro longe e trabalho escrevendo sobre os dias das pessoas, contando _ de outro jeito _ histórias. Ela sorriu, bateu de leve em meu rosto e me beijou a mão. Por alguns segundos, finalmente entendi o que nos ligava. Na despedida, me pediu que não esquecesse de voltar. Retribui o beijo e lhe disse, com toda a certeza do mundo: Eu nunca fui, Dona Iracema. Nunca fui.

Coração 14:26

Aquelas portas exerciam fascínio. Éramos nós ali, num constante exercício de domínio, medo e sedução. Eu e as duas portas de correr. Elas: pesadas, de madeira nobre, verniz escuro, envelhecidas. Eu: medindo talvez menos de meio metro, franzina, cinco anos de idade. A casa inteira parecia dar abrigo à festa diária de cheiros vindos da cozinha, vozes infantis e adultas povoando paredes, jardim, móveis, fotografias, lençóis, janelas e muros. Tudo tinha a mão da liberdade desenhando aquele lugar. Mas, por trás daquelas portas, um mundo estranho e ao mesmo tempo encantador parecia se esconder de mim, ser proibido. Não que o fosse. Meu pai jamais as deixou trancadas. Tínhamos passe livre. Eu é que me sentia intimidada por não ser capaz de decifrar o segredo escondido.


Inúmeras vezes vi meu pai entrar ali com minha mãe, irmãos mais velhos e amigos que visitavam nossa casa. Ali - parada nalgum canto, à espreita - eu espiava rapidamente estantes da mesma madeira das portas, livros de cores, texturas e tamanhos diversos. Todas as paredes tinham livros, que cresciam até o teto e depois dele. De onde eu estava, em meu meio metro, a impressão é que eles poderiam atravessar o telhado e tocar as nuvens. E pareciam ter também olhos, bocas e ouvidos. No centro daquela sala gigante, mesa perfeitamente lustrada e cadeira forrada com couro de cabra. No chão, tapete de veludo, cor de vinho. Era ali que eu queria ficar.


Meus cinco anos, no entanto, me empurravam para as bonecas, a rua e o velocípede de metal amarelo e azul. Um dia, porém, resolvi arriscar e invadir o mundo estranho. Entrei, sorrateira, enquanto todos dormiam. Busquei o livro ao alcance de minhas mãos pequenas. Escalei a cadeira com couro de cabra, abri a primeira página e esperei que a mágica acontecesse. Nada.


Nenhuma folha lá fora se mexeu, o vento não abriu as janelas, nenhuma voz, nenhum som. Fiquei esperando, até adormecer. Fui acordada quando meu pai já me colocava na cama. “Não consegui”, reclamei, antes de voltar a dormir. Não sei se ele entendeu, ouviu ou respondeu.


Não desisti. Continuei indo à biblioteca. Sentava ao lado de meu pai, meus irmãos, e folheava os livros – no sonho vão de traduzir os sinais impressos. Meses depois da primeira tentativa, finalmente aprendi a ler. Fui tropeçando, esquecendo a pontuação, querendo devorar as palavras.

Precisava descobrir a senha que me levasse àquele encanto. No dia em que entrei de férias na escola, meu pai me deu uma boneca de pano – perdida numa de nossas mudanças – e o embrulho, em papel-madeira. Abri e lá estava ele: o livro que peguei na estante, quando tentei entrar à força no mundo encantado. Sem que nenhuma folha mexesse, janelas fossem abertas ou vozes ordenassem a magia, eu joguei o nome no ar: “Coração”. Pronto. Estava feito. O encanto foi quebrado.


Guardo comigo até hoje o livro, editado em 1923 – quando meu pai tinha 12 anos – que conta a história de um menino europeu descobrindo as armadilhas e encantos do sentimento humano, no final do século dezenove. Através do amor e da imensa sabedoria de meu velho pai, entrei no mundo da leitura pela porta da frente, com o Coração nas mãos e a alma em festa.

Ana Branca da Silva 14:23

Ela apareceu de repente em nossa vida. Um dia, pela manhã, acordamos e estava lá. Sentada num banco tosco de madeira pobre. Quieta, calada. Antes de ir à escola, sempre aproveitávamos os goles rápidos do primeiro vento fresco do dia. Observávamos a rua querendo acordar, com os carros abafando os passarinhos, e seguíamos, mãos apertadas entre os dedos firmes de meu pai. Eu e minha irmã. Naquele dia, ela estava lá. Encostada no muro, com chinelos gastos, roupas puídas, olhos fixos no asfalto, que certamente a levavam a um lugar bem longe dali. Congelei a imagem, nos breves segundos em que me olhou e sorriu. 

Tive medo. Das mãos gastas, surradas e ásperas. Das unhas grossas, amareladas e partidas em linhas horizontais, como ondas na cartilagem.


Os cabelos lisos misturavam o amarelo, o branco, o cinza e um leve tom preto, amarrados com pano rasgado. Ao lado do banco, saco plástico e bugigangas.


Minha manhã demorou a passar. Eu não conseguia esquecer. Piedade, medo e curiosidade imploravam aos ponteiros que voassem. Naquela tarde, depois que cheguei em casa, fiz as tarefas mais rápido e desci ao seu encontro. Depois de me oferecer biscoitos e um lugar na calçada, desenrolamos nossos novelos.


Ela pedia esmolas, descobri, e tinha 80 anos. Eu aprendia lições na escola, contei, e faria oito anos em pouco tempo. Não tinha lar, parentes, amigos nem história, me disse. Eu tinha um armário com brinquedos, pais, irmãos e agora uma amiga. Viramos boas companheiras de história, por longos meses. A calçada passou a ser meu melhor lugar depois das aulas. Fui promovida a tesoureira de seus ganhos diários. Contava as moedas, separava as cédulas e guardava no saco de bolinhas de gude. Em troca, ganhava o lanche da tarde, abraços calorosos e o melhor sorriso. Aquele era o nosso segredo, pensava. No fim do dia ela levantava, recolhia banco e sacolas e ia embora. Nunca soube para onde.


Um dia, porém, alguém se encarregou de contar aos meus pais. "Onde já se viu? Pedindo esmolas?". Eu só queria cuidar dela, é a minha melhor amiga, argumentei. A história ganhou os corredores do prédio. Fui proibida de sentar na calçada.


Diante de minha tristeza incômoda em casa, minha mãe resolveu a questão com uma surpresa. Reuniu amigas, vizinhas e descobriram onde ela morava. Juntaram comida, dinheiro, remédios, roupas e se encarregaram de fazer a doação. Só então descobri seu nome: Ana Branca da Silva.


Depois daquele dia, nunca mais nos vimos. Voltei à calçada e esperei, sentada, no mesmo lugar. Semanas seguindo o mesmo ritual. Até me dar conta de que ela não voltaria. Mais de vinte anos passaram e eu ainda busco, em todos os caminhos por onde passo, o conforto e um abraço igual ao dela.

A menina e eu 11:59

Seria mais um dia de trabalho. Nublado, entre o verão e o outono, em pleno mês de março no Sul catarina. A pauta chegou e me apressei em cumpri-la, já que envolvia crianças _ e elas sempre conseguem fazer a diferença em mim. Não estava em meus melhores dias. Tudo acontecia ao mesmo tempo e enquanto o céu mostrava nuvens negras, elas explodiam em temporais pesados dentro de mim. Um aguaceiro sem fim.


Emergência do hospital lotada. Virose tomando os pequenos de assalto e eu ali, à espera da fonte que me passaria as informações e os possíveis contatos para a matéria. Tentando me concentrar no trabalho, via pessoas chegando e saindo, gente muito ferida dando entrada, gente feliz com a alta. Sirenes, macas, médicos com suas roupas brancas, luvas, máscaras... Enfermeiras dando o melhor de si, na corrida contra o tempo. E eu ali, achando a minha dor a maior do mundo todo.


Foi então que me falaram que eu poderia conversar com uma família que aguardava a internação de sua menininha. Caminhei apressada pelo corredor, tentando não me deixar atingir pelas dores alheias, tentando ser o que preciso ser quando estou com bloco e caneta na mão: mero transmissor dos fatos, antena que capta e joga os acontecimentos, sem interferência de qualquer natureza.


Ali estavam, na sala de observação, a menininha e seus pais. Olhos assustados, desconfiando de tudo em sua volta. A vontade era abraçar, dar colo, pintar as paredes frias com aquarela, tirá-la daquele lugar. Deveria haver uma lei universal que determinasse: hospitais não são para as crianças. Pronto, seria perfeito.


Mandei o maior sorriso que pude esboçar em meio aos meus atropelos daquele dia. Falei brevemente com os pais e me concentrei nela. Começou a contar, feito gente grande, o que estava acontecendo. Aquela voz doce, suave, passando as suas reclamações, foi o tranquilizante que eu precisava. O relato inocente e cheio de mágoa com o vírus malvado nos fez sorrir. E ela nos acompanhou, tagarelando, retomando em segundos o viço da idade.


Sua grande preocupação era perder as aulas. Prometi que ela tomaria uns remedinhos e logo estaria de volta à escola e às brincadeiras com os amigos. Foi minha vez de ganhar o maior sorriso, com um sinal de consentimento.


Prossegui com os pais, colhi o que precisava e comecei a me despedir e agradecer. Foi então que ela deu um salto do colo da mãe e me abriu os braços. Dobrei-me diante dela e acolhi aquele abraço forte, demoradinho. Fiz mais uma promessa: ela sairia logo dali e ainda nos veríamos em alguma esquina da cidade, só para ela me dizer que eu estava certa.


“Você foi a melhor médica”, falou. Mais sorrisos encheram a sala. Não desfiz sua crença. Já que confiou em mim, seria bom que continuasse assim, para que todos os outros que chegassem perto fossem recebidos do mesmo modo. Seria mais fácil pra todo mundo.


Agradeci o elogio e saí pelo mesmo corredor por onde havia entrado minutos antes. O temporal estava manso em mim. As nuvens começavam a se dispersar. Nada do que quiseram me fazer acreditar sobre mim importava. Eu ainda consigo falar a língua dos anjos. Tenho salvação.

Caranguejada 00:24

Sempre que tem chuva caindo, batendo na janela aqui em casa, penso naquele passeio que fizemos. Nada era igual às aventuras que inventávamos quando queríamos festa e a calmaria imperava, absoluta.


Pois naquele dia, a chuva de julho _ que sempre nos empurrava ao recolhimento forçado em casa, longe dos amigos, dos caminhos até a Mata do Cajueiro, dos araçás, pitangas e goiabas fresquinhas, tiradas do pé _ decidimos que a festa viria.


Arrumamos as mochilas, pegamos os samburás, preparamos as iscas e esperamos a chuva dar um pouco de trégua. Caindo fina, que mal dava para ser notada, ela nos deu a pista de que poderíamos sair sem causar problema em casa.


Nos juntamos, bando de crianças entre os dez e os quinze anos, e partimos felizes em direção à mata. No meio do caminho, decidimos que a mata era pouca aventura para um dia como aquele e resolvemos que o mangue era nosso ponto de chegada. Fomos, sem saber que em lugar estranho não se deve entrar sem licença.


Entramos no caminho de lama e já na primeira pisada perdemos as sandálias de borracha. Enrolamos os pés nos sacos de plástico que enrolavam as iscas e nos enfiamos entre árvores pontudas, com cuidado para não sermos alvos dos cascos de ostras pelos galhos e na lama. Às vezes o atoleiro era pouco, em outros momentos parecia que nos engoliria.


Sérgio, nosso amigo mais esperto, filho e neto de pescadores, jogava o braço inteiro nas tocas dos caranguejos e demorava ali. Mexia, puxava e voltava, até nos trazer os bichos. Patonas abertas, olhos pulados, chiando e espumando de raiva por terem sido arrancados do seu canto. Dali para o samburá e do samburá para o caldeirão.


A farra estava boa, até que os trovões começaram a trazer os doces bichinhos à superfície. Caranguejo sai da toca quando o barulho incomoda. Todo praieiro sabe disso. Nós descobrimos ali, nos vendo cercados de bichos brabos por todos os lados, sem poder correr _ com a chuva deixando nossa visão bem turva _ desesperados.


Quanto mais queríamos correr, mais afundávamos. Até que alguém lembrou dos galhos finos das árvores, onde eles também subiam, mas seria mais fácil sair pulando entre os galhos do que tentar andar na lama grudenta, em meio às patas afiadas.


Depois de muitos gritos, choro e medo, conseguimos vencer o mangue. Ao pisar na areia firme, nem quisemos olhar para trás. Corremos, nos limpando da lama escura na chuva, encharcados. Antes de chegarmos em casa, a chuva deu nova trégua e levou nosso medo embora. Começamos a lembrar do que aconteceu e as gargalhadas vieram, com resquícios de aflição.
 

Nos samburás, Sérgio _ enquanto nos borrávamos _ ia colhendo a caranguejada doida. Nossa festa estava garantida à noite. Fizemos caranguejo e pirão e devoramos os bichos com vontade, afinal, tudo sempre terminava bem.


Sempre que tem chuva caindo, batendo na janela aqui em casa, tento lembrar do passeio e desse aprendizado. É preciso cautela para pisar em terreno estranho e, se você souber tirar proveito das adversidades, tudo há de terminar bem.

Retrato de amigo depois dos 30 00:20

É que nós tínhamos a certeza de que nossos sorrisos estariam congelados. O tempo nos seria piedoso, amigo, guardião de nossos mundos perfeitos.

É que nada ou quase nada sabíamos da vida e assim usufruíamos do agridoce sumo, com um punhado de sal nas mãos. Por isso, não vimos nossa história ir tecendo o cenário, mudando o figurino, a mobília, os panos de fundo, a maquiagem que refaz nossos rostos, dia após dia.


Nossos passos tinham o caminho gravado na sola dos pés. Íamos, com o mapa na palma das mãos, com a certeza de semideuses nos olhos, com a respiração de quem domina o ar rarefeito, os sete mares e a força da gravidade no mais baixo abismo. Éramos os donos da verdade mais que relativa, sem qualquer ponderação, longe de qualquer teoria bem estabelecida. O absoluto havia sido extinto de nossas convicções mal-balanceadas.


Éramos jovens. Em meio aos quase vinte, aos vinte, aos vinte e poucos, aos quase trinta. E tudo era eterno, assim. Até que um dia, a idade nos tomou conta, nos pegou de assalto. Vimos, em meio a quedas _ ausências repentinas e seculares de pai e mãe, irmãos, companheiros de jornadas, falta de dinheiro, segurança e alegrias _ que nossos grãos de areia começavam a ficar pela metade no relógio.


Onde antes tudo era belo, aos poucos as rugas foram ganhando terreno. As mãos viram brotar novos montes, novos marcos, novas trilhas na palma e nos dedos. O sorriso ficou mais sereno, meia-boca, mentindo tranqüilidade em meio à desconfiança absurda de tudo e de todos.


Vimos longe os nossos passos, o nosso chão, a casa onde nascemos, a escola, os parquinhos, as festas, os vizinhos, os primos, os avós, os natais, as páscoas, os almoços de domingo, as corridas malucas de bicicleta, os bailinhos dos sábados. Já não havia as esperas das sextas-feiras nas paradas de ônibus, quando os que faziam faculdade davam o ar da graça e refaziam as brincadeiras de sempre.


Quem havia ficado, sem se aventurar na boa-esperança, celebrava com o mesmo ar de criança. Quem havia partido e encontrado todas as desilusões e as brechas apertadas das soluções do mundo, chegava como quem renascia. Estar ali era como reestréia no ventre da mãe. Aconchego, coisa boa sem nome, euforia, segurança, paz, tudo junto no meio do estômago, num rebuliço indefinido e eterno. Quinze cavaleiros do apocalipse à espera do futuro. Assim éramos nós.


A tecnologia me faz espectadora das vidas que o futuro fez. Vejo pequenos fios brancos espalhados nas cabeleiras castanhas. Traços quase imperceptíveis contornando os olhos, bocas, nariz. Sulcos profundos nas retinas, no peito, nas lembranças.
Saudade, fazendo todo mundo pedir trégua a Deus. Porque a vida é breve demais para tanto amor.

Permanecer 00:16

Ele tinha vinte anos e alma de senhor maduro. Falava manso, sorria como menino que acabou de ganhar bicicleta novinha em folha e serenava nossas dores com maestria. Não havia quem não gostasse de estar perto, de partilhar a mesa, o campinho de futebol, as caminhadas na praia com ele.


Com paciência e desvelo me ensinou a andar. Com carinho, me deixava brincar com seus soldados de borracha _ mesmo quando eu desmontava tudo _ e contava histórias antes de me fazer adormecer. Um dia ele me falou das estrelas. “A luz que elas têm é tão forte que mesmo depois que elas morrem, permanecem acesas, por milhares de anos. Algumas dessas que vemos lá em cima nem estão mais ali”.


Achei aquilo tão forte, tão bonito. Morrer e permanecer. Nunca apagar. Pensei em como seria bom se isso fosse possível para a humanidade. Nunca deixar de iluminar o mundo. Explodir e espalhar luminosidade, brilho. Guardei aquilo comigo.


Num dia ensolarado de abril ele saiu para mais uma caminhada com um amigo. Nunca mais voltou para casa. Minha mãe havia preparado seu prato preferido: polvo ao molho de coco. Ficou ali no fogão, por horas, até que alguém se compadeceu e jogou no lixo. Na travessia do braço de mar que ligava nossa praia a um vilarejo, ele foi levado para o fundo do rio. O amigo tentou lhe trazer de volta. Em vão. A correnteza foi mais forte. Essa é a versão que temos.


A cidade inteira se mobilizou. Pescadores jogaram suas jangadas nas águas, benzedeiros pediram aos seus mestres que mostrassem o caminho. Homens, mulheres e meninos fizeram barcos de isopor com velas para iluminar a noite e trazê-lo de volta. Nada adiantou. Foram dois dias de espera, angústia e muito medo que não desse mais tempo, que não houvesse jeito algum.
 

Não houve. Os bombeiros o encontraram, numa praia próxima, e nos trouxeram. Aquele moço calmo, alegre, de coração leve, partiu sem aviso prévio. Nos deixou sem qualquer motivo.

Demorei muito tempo tentando aceitar. Muito tempo mesmo. Penso que entendi, assimilei, fui forçada a conviver com isso, mas não tenho certeza da minha aceitação. Era meu único irmão, meu companheiro, confidente, meu poetinha preferido. E tinha apenas vinte anos.


Nos juntamos bem mais depois de sua partida. Nossa família grudou, virou mesmo um ninho mais fechadinho. Mas sempre esperei que ele chegasse, depois dos portões fechados em casa. Cheguei a ouvir seus passos na cozinha, abrindo a geladeira, pegando a metade do refrigerante que eu dividia, comendo o doce predileto.

Esperei por muito tempo vê-lo sorrir ao pé da minha cama, me acordando e dizendo que foi um sonho ruim e que ele jamais saiu de casa assim, tão cedo. Hoje eu sei que ele está iluminando outros mundos. Creio fervorosamente na vida e na luz que não cessa. Meu menino virou estrela, explodiu de tanta coisa boa que havia em si. Vou soprar minha cantilena por todos os meus dias, em seu nome. Para que a chama jamais apague e nosso amor, talvez um dia, vire uma estrela. Permaneça.

De amor e simplicidade 00:13

O asfalto ainda demoraria a chegar. Chão batido, estrada improvisada entre caminhos abertos à marra por homens e mulheres que criaram o vilarejo. Casas simples desenhavam arruados charmosos, onde as pessoas colocavam toalhas bordadas nas janelas e conversavam sobre a vida, do amanhecer ao pôr-do-sol.


À noite a rotina era a mesma: cadeiras nas calçadas, vizinhos e histórias repartidas, como quem divide o pão. Cansados, os moradores se recolhiam bem antes da noite ensaiar a madrugada. Tudo brindado pela trilha do mar, suave, sendo abrandado pelo vento manso. Foi nesse lugar que ela encontrou o amor da sua vida, o homem de sua história. Caixeiro viajante _ e dos bons, como fazia questão de frisar _ ele bateu os olhos e a quis. Ela rejeitou a idéia de se render ao vocabulário farto daquele estranho, que conhecia o mundo inteiro, mas nada poderia saber a seu respeito.


No entanto, aqueles olhos, aquelas maneiras de quem pega a dor com as unhas e esmaga, lhe arrastaram. Seria dele. Entre idas e vindas, resolveram casar no mês de agosto. Vento forte, chuva sem tréguas. Despesas dobradas, para montar palhoça que guardasse os convidados do temporal.


Na manhã da festa o céu se curvou ao amor dos dois. Sol, calmaria, caminhos abertos aos noivos. A casa se abriu às 8h em ponto. Todos os moradores deveriam saber: ela sairia da casa dos pais e seria entregue ao marido, a quem deveria seguir pelo resto de seus dias. As moças das redondezas, vestidas de branco, a esperavam com flores de laranjeira nas mãos. 

O caminho havia sido bordado com rosas e folhagens, num tapete primoroso por onde seus pés descalços a levariam até a capela.

Lá, um jovem caixeiro tremia, da cabeça aos pés. Suava, dobrava e desprendia a gravata, secava o rosto, contava o tempo _ que insistia em lhe fazer desfeita e demorava a passar, de propósito. Ao longe, viu surgir o cortejo. A procissão seguia, silenciosa, pela rua. De braços dados com o pai, ela tentava acelerar os passos. Tinha pressa de começar aquela vida, que agora, sim, seria sua. Nasceria a partir de então.


Casaram. Tiveram oito filhos e viveram por 20 anos juntos. O caixeiro se foi, num mal súbito, num dia de agosto. Desde então, seus filhos e netos passaram a ser sua vida. E a cidade inteira começou a lhe pegar de empréstimo os sentimentos mais preciosos e as melhores histórias. Jamais se rendeu à tristeza. Tinha a gargalhada mais farta que já ouvi.

Já a conheci como “Vó Benedita”. Fui uma das que lhe pegou o amor, os sonhos e os guardou consigo. Passava horas e horas conversando com ela, em meus dias de férias, em muitos janeiros. Nunca esqueci a história do caixeiro.


Passei por sua casa, há poucos dias, e quase bato à porta. Ela também já partiu. A cadeira branca, de palhinha, continua no terraço, junto ao cesto com linhas e agulhas de tricô. Na parede, um enorme Coração de Jesus. Deu saudade.

Revivi, por instantes, tudo que me contou um dia. Busquei o ar daquela casa, puxei bem forte as lembranças. Em silêncio, pedi as bênçãos daquela que um dia me ensinou como é simples ser feliz.

Humanidade Catarina 00:10

Quando cheguei aqui, a primeira vez, eu vi que algo muito forte esperava por mim. Era caso de amor. Vi um lugar diferente de tudo que já havia visto na vida. Gente que falava com um charme, uma cadência, um dobrado... Gente e terra que me encantaram demais. Eu estava em Santa Catarina. Terra com nome de santa. Terra abençoada que me fez render todos as honras e me apaixonou de modo arrebatador.


Vinda de um lugar mágico, iluminado, quente, me via enfeitiçada por algo novo, límpido. Por um lugar com cara de novo mundo. Era uma coisa estranha me tomando as entranhas, me pedindo para ficar. Não sei mesmo o que mais me prendeu aqui. Não sei. Eu busco e não consigo atinar mesmo ao que me prendeu.


Lembro de uma procissão de São José, lá na terra onde nasci e de onde vim. Lembro de pedir pela saúde de minha mãe, abraçada a foto dela, e de rezar para voltar a Santa Catarina. Porque eu queria mais daquela sensação de porto seguro, de fertilidade, de hospitalidade, de retidão, que vem do ventre dos catarinas.


Só sabe o que é Santa Catarina quem está aqui, quem vive, quem partilha, quem descobre essa terra de imigrantes fortes, desbravadores, determinados, firmes, teimosos, corretos, honestos.
 

Meu grande orgulho é ter sido aceita, recebida com festa, com amor, com afeto de família. Eu amo esse solo, esses amigos feitos, esses dias vividos e conquistados. Catarinense tem um brio tão desconcertante que modifica o modo de qualquer pessoa ver o mundo. O ritmo é oposto a todos os que já havia experimentado. E eu quis esse baile. Eu quero viver com essa gente que me desperta admiração a cada dia.


Nas últimas semanas eu fui, nós fomos pegos de surpresa. A terra da beleza e do trabalho, dos homens fortes, das mulheres quase de Atenas, se viu em meio a um mar grosso de barro vermelho. A chuva derrubou os morros e as fortalezas do peito dessas pessoas vistas por mim como invencíveis, inquebrantáveis. Meu peito foi ficando apertado, miúdo, triste.


O pior era sentir que as estradas bloqueavam o acesso, as possibilidades. Foi terrível ver aquelas pessoas gigantes com os olhos marejados, tomados de dor e de medo. Foi indescritível temer por gente que eu nem conhecia, mas que já é tão minha.


Tudo aqui inspira cuidado. No entanto, mais uma vez, Santa Catarina me ensina que esse solo é mesmo diferente de todos os caminhos por onde passei. Em meio ao tormento, o catarinense esboça sorrisos. No meio do vendaval, dos saques, do desespero, famílias antes estruturadas para receber cem gerações à frente, vencem rugas, idade, cansaço, desesperança e fazem todo o caminho feito pelos ancestrais. É hora de refazer, então, mãos à obra, sem tempo para lamentações.


Esse é o segredo Catarina: a força, a vontade, o destemor, a valentia, a dignidade, a hombridade, a valentia. Eu quero estar aqui. Por quantas tempestades o planeta resolver mandar, se ainda tiver a impiedade de mandar. Porque aqui, mais do que em qualquer outro lugar no mundo, eu aprendo a viver e a ser um ser humano de verdade.

O piano 00:08

Então, num dia de Natal ganhamos um piano. Não era de cauda, nem enorme como os dedilhados pelos grandes músicos, mas era nosso. E aquilo foi um festerê em casa. Três Marias disputando um lugar no banquinho, tentando tirar alguma coisa parecida com música daquelas teclas mágicas e, até então, misteriosas. Até que um dia eu desisti de tentar adivinhar como fazia aquilo e pedi para aprender de verdade.


Fui matriculada na melhor escola da cidade e aprenderia numa turma cheia de menininhas da mesma idade. Meus pés mal tocavam os pedais e as mãos _ que até hoje são minúsculas _ passavam trabalho para alcançar as notas mais longas. No entanto, eu havia cismado que seria pianista e persistiria no intento, mesmo que para isso meu mindinho fosse sacrificado.


Saía da escola, almoçava, e três vezes por semana minhas tardes eram da música. Aprendi rápido e impressionei Norma, a professora mais paciente e dedicada que já conheci. Em pouco tempo eu já tocava bem. Fui selecionada para a audição da escola. Tocaríamos numa rádio local e seríamos ouvidas por toda a cidade. Alvoroço em casa. Ensaios dobrados, orgulho enchendo peito de pai e mãe. Roupa nova, corte de cabelo, expectativa. Eu nem sabia porque tanta confusão, mas desconfiava que eu tinha conseguido algo grande.


Minha avó mandou presente, tias pediam fotografias e a escola convidou todo mundo para a festa. Tudo correria como o previsto e o sonhado, não fosse uma sardentinha ruiva, de olhos enormes e azuis, que atravessou o meu caminho.


Entre as arrumações feitas em mim, que me sentia praticamente um mamulengo nas mãos dos adultos, a idéia aprovada por Norma e por minha mãe para que meus cabelos _ mais finos do que seda na época (antes de dar o curto-circuito na adolescência), não caíssem sobre os olhos e atrapalhassem minha concentração _ foi colocar uma tiara na cabeça, empurrando a franja para trás. Pois bem, elas não contavam com minhas benditas orelhas de abano. No meio do caminho havia as orelhas. Elas destruíram o que poderia ser uma bem sucedida carreira de pianista.


A sardenta foi o instrumento do infortúnio. Ela, que havia ficado de fora da audição e não conseguia passar do “Pastorzinho (dó-ré-mi-fá)”, resolveu me tirar da jogada com a maldade peculiar de algumas crianças e me fez perceber a semelhança entre minha pobre cabeça e a do elefante Dumbo.


Foi um tal de Dumbo pra lá e Dumbo pra cá. Quando percebi, eu era o alvo dos risinhos maquiavélicos e da gozação ensurdecedora dos coleguinhas ingênuos e inocentes da escola.
 

Pronto, deu-se o drama. Bati o pé, empinei um bico quilométrico, cruzei os braços e endureci. Mula empacada, cara de bicho brabo, não mexia nem os olhos. As lágrimas caiam como se fossem lavas vulcânicas pelo rosto e eu não dava um gemido sequer.

Mandaram Kekéia (minha irmã que sempre conseguiu tudo de mim) me convencer. “Não vou”. Veio meu pai. “Não vou”. E o meu tempo de apresentação chegando. Não, vou, não vou, não vou. Arranquei a desgraçada da tiara da cabeça, puxei os cabelos pra frente, limpei o nariz encharcado na gola do vestido e corri para o carro.


Nunca mais voltei às lições. Toquei por alguns anos o que havia aprendido com Norma, com uma ponta de arrependimento, mas com o orgulho ferido demais para voltar atrás. Aos poucos, fui me afeiçoando ao violão. Aos doze anos ganhei o primeiro de presente e nunca mais soube o que era viver sem ter o bom e velho companheiro por perto. As orelhas de abano? São boas amigas, que me fazem ouvir melhor a música do mundo.

Lição de amigo 00:06

Ele levava jeito pra um monte de coisas. Corria de um lado para o outro, sempre apressado para construir sua vida, dando a impressão de que o futuro era mesmo algo pra ontem e grandioso.

Entre suas múltiplas funções, foi barbeiro, carregador de caminhão, frentista, lavador de carros, entregador de pizza, leiteiro e até arriscou jogar futebol, mas não deu certo. Quando o conheci ele ajudava o dono da mercearia, na esquina da casa dos meus avós. Toda tarde eu ia lá, pedia o mesmo refrigerante, o mesmo bolo com calda de chocolate. E ele sempre com aquele sorriso, enorme.

No dia que aprendi a andar de bicicleta, levei o maior tombo da história e quase fiquei sem dentes, foi ele que pulou o balcão e veio me socorrer. Nesse dia não precisei pagar pelo bolo nem pelo refrigerante. Tudo por conta da casa e do coração generoso daquele moço guerreiro de coração generoso.

No último Natal, fui levar minhas sobrinhas para o tradicional abraço no Papai Noel, lá na casinha montada pra ele, no meio da pracinha do lugar de minha infância. A fila enorme não me fez desistir e, entre um papo aqui e ali com velhos conhecidos, logo chegou a nossa vez.

Fotos, beijos, pedidos e aquele olhar me chamou a atenção. Eu conhecia aquele homem, por trás daquela barba de algodão e de toda aquela roupa e enchimentos. Mãozinhas cheias de pirulitos, rostinhos rosados com felicidade estampada, era a hora da pizza, do sorvete e de tudo que faz parte dos sonhos delas.

Enquanto elas lanchavam, eu olhava de longe pro velhinho. De repente, me veio a lembrança. Era ele, o meu velho amigo Moacir. O Papai Noel da pracinha era o moço das minhas lembranças.
Voltei à casinha e conversamos longamente, vendo as crianças brincarem no parque. Ele já era avô, tinha uma lista enorme de nomes dos netos, comprou uma casa à beira-mar _ como havia planejado _ e agora não corria mais. Estava aposentado, só cuidando do que plantou um dia.

Rimos muito lembrando a espoleta que fui, contei como estava longe agora e quanta saudade sentia de tudo que não volta mais. “Não sinta saudade, menina. O tempo não anda pra trás. O longe não significa o distante”. Fiquei batucando aquilo na cabeça: o longe não é o distante, o longe não é o distante.

Este ano, não consegui chegar a tempo no guichê para comprar a passagem que me levaria até minhas meninas e ao meu lugar. Desde que nasci, é o primeiro Natal fora de casa. E isso dói. Muito. Mas hoje eu acordei pensando no Moacir, que partiu no início do ano para um lugar bem longe. E me dei conta de que estarei lá sim, seja qual for o chão que eu pise. Porque um velho amigo me ensinou que não há distância quando se tem amor.

Verbos de ligação 23:57

Era como discutir o sal e o açúcar. Como pensar em barro seco e molhado, decidir entre a polenta e o sabugo verde do milho. Coisas distintas, mas tão próximas. Éramos assim, nós dois. E ele sempre insistia que éramos iguais. Eu e o meu melhor namorado. Se é que existe o melhor entre os amores. Amores são amores, ora essa... Não é, não?

Mas nós sempre discutíamos sobre tudo. Era falar em azul, ele vinha com vermelho. Com um charme infernal. E isso se prolongava, até que um dia a coisa descambou do simples pro complexo. As mulheres tendem a ser pura volúpia e os homens gostam mesmo é do preto no branco: do futebol com cerveja, amigos e saldos bancários. Gostam de mostrar que os filhos são filhos mesmo da grana que pingou no orçamento.

Nada de leite do peito alimentando as crias, de colo quente de mãe, de fraldas descartáveis bem aprumadas, de febres vigiadas, brotoejas curadas com pasta d’água, de mãozinhas grudadas com os filhotes, choros sem explicação. Eles são os provedores e isso é o que importa.

Então, descambamos para os planos de família _ eu e meu futuro marido. Apaixonados, lembramos do nosso primeiro encontro. Eu, começando a vida de jornalista, em meus vinte e poucos anos _ achando que o mundo inteiro seria refém dos meus sonhos. Ele, mais novo do que eu, achando que aquela menina segura, com caderno de poesia no colo, em meio à reunião política (que prometia salvar a comunidade) era a mais bela pérola da literatura brasileira.

Nos apaixonamos. E dali para a boneca de louça, depois de ter minha mãe como cúmplice, foi um pulo. Ganhei a boneca, amei, dividi os poemas num barco no meio do Capibaribe e disse: vou te namorar para sempre. O que nós não sabíamos é que, entre os sonhos do Che (meus), os poemas, a barba dele sempre por fazer e minha boneca de louça, havia nossa vontade (mútua) de ganhar o mundo.

Ele queria ter. Eu, ser. Entre o ter e o ser _ esquecemos _ havia linha tênue. Ser bom era ter boas intenções. Ter boas intenções implicava em querer ser algo bom. Ter o castelo dos sonhos implicava, por conseguinte, em ser bom em tudo que se fizesse. Ser bom em tudo significava ter vontade e competência. Isso para mim.

Para ele, ser bom era acumular bens. Ter, ter, ter. Não importava como. E isso se conseguia mostrando ao mundo o que não se era realmente, mas o que o mundo gostaria de ver.

Em meio aos dois verbos _ ser e ter_ nos perdemos. Ele, por querer ter demais. Eu, por querer me fartar de ser. Crescer nisso, ganhar a mim e ao mundo em tudo que o mundo e a vida me dessem. Ele, por querer se fartar daquilo: ganhar ao mundo e tudo que ele pudesse acumular através disso. Sem ressalvas.

Um dia, ele se viu envolvido num caminho bem longe do meu. E eu não sabia mais como encontrar o rastro deixado por ele nos primeiros dias.

O mundo girou e cansamos de tentar encontrar portais que nos levassem de volta. Ficamos assim, entre o ser e o ter. Acabamos por perder o maior tesouro que a vida nos deu. A vontade de inventar o que já existia foi o mais cruel dos carrascos: envenenou, dia após dia, o grande amor de nossas vidas. E nos fez entender todos os verbos de ligação, após a perda que nos amarrou para sempre: ser, estar, parecer, permanecer... Ficar.

O Foca 21:12


Nossos sonhos sempre foram parecidos. Diferença mínima de idade, muito pouco, quase nada, mas escolhas parecidas e toda a vontade de engolir o mundo. Mas ela estava à nossa frente, porque tinha mais pressa do que nós para buscar o que queria e nos vimos sentados, naquelas tardes mornas, nos bancos da faculdade colhendo seus ensinamentos.

Movidos pela paixão ao jornalismo, íamos engatinhando na profissão, com ideais explodindo nos olhos, nos poros e na palma das mãos. E ela adorava jogar lenha na fogueira. Fazia isso com sutileza, provocando o bichinho que cada um trazia dentro de si, pronto para fazer misérias com o que colhíamos pelo caminho.

Num desses dias, surgiu a ideia de darmos voz ao que queríamos. O jornal laboratório só seria possível em meados do curso e não sabíamos esperar. Tudo urgia, era pra ontem, anteontem, pro ano passado. O desperdício das horas era pecado e queríamos o amanhã bem antes do galo cantar.

Dos nossos desejos, nasceu O Foca. Datilografado na minha velha Olivetti, depois do horário das aulas, recortado, colado e xerocado, ele ganhou corpo e os corredores da faculdade. Aos poucos foi ficando conhecido, servindo de vitrine para os textos, inclusive dos veteranos, envolvidos com o movimento estudantil _ que queria tirar o presidente louco do poder.

Não cobrávamos por recados, publicações de textos e trocávamos pequenos anúncios por rodadas de milk shake e hambúrgueres na lanchonete da esquina. Porém, um dia não houve dinheiro suficiente para tocarmos o projeto. A equipe, que começou em três, já somava quase 15 futuros jornalistas ávidos de reportagens e reconhecimento. Juntamos passes estudantis, vales-refeições, moedas, trocados... Não dava nem pro começo. Teríamos que parar as copiadoras e o sonho.

Não sei quem falou para quem, quantos contaram a quantos... A notícia se espalhou e chegou até ela, a nossa mestra-companheira. Em menos de um dia o dinheiro dava para imprimir a edição da semana e sobrava para o resto do mês.

Dizem que ela contou nosso caso, colocou uma bela cédula sobre a mesa _ no café das quatro na sala dos professores _ e esperou que os outros a seguissem. Todos colaboraram. Numa caixinha, o dinheiro chegou em nossas mãos. Pagamos as quatro edições, ganhamos a admiração do pró-reitor acadêmico e o patrocínio que precisávamos para continuar o sonho.

O Foca até hoje é lembrado em nossos raros encontros. Quando deixamos a faculdade, ele foi engavetado. Faltou quem quisesse tocar em frente. Hoje os mais jovens não precisam enfrentar teclas pesadas e sem óleo em Olivettis emperradas, nem passar a noite recortando fotos e textos para depois enfrentar as copiadoras.

As dificuldades fizeram com que superássemos qualquer dificuldade, nos uniram e fortaleceram nosso querer. No meio delas, um anjo amigo, com vinte e poucos anos, nos abrindo caminhos e fazendo valer a pena acreditar que valeria.

Preciso voltar a ser aquela, reencontrar o caminho, esquecer os fios brancos na testa, renovando a certeza de que só quem persiste e não duvida nunca, consegue ver o sol rasgar a noite e iluminar o mundo.