Um dedo de prosa

Germana Telles

Estranhos 13:13

Eu, minhas perspectivas e minhas crenças, de mãos dadas pelas ruas de Tubarão. Com todas as minhas certezas amarradas, achando saber quase tudo do pouco que vivi, esbarrei naquele homem.
 
O sol fervente do quase meio-dia não ajudava muito a traduzir qualquer pista sobre pessoas ou coisas. Eu queria mesmo escapar do calor, pagar as contas e apressar o passo, antes do trabalho. Mas ele, ali no meio do caminho, me fez parar e olhar para os lados, diminuindo a marcha agitada da sexta-feira.
 
Falando apressado _ numa parada de ônibus, apoiado na velha bicicleta _ era ouvido por estranhos, que absorviam sua vida, espantados. Sem paradeiro, ganhava o mundo. Encharcado de suor, maltrapilho, barba por fazer, misturava força e cansaço nas expressões.
 
Devo ter ficado mesmo impressionada, porque ele me percebeu e se percebeu comigo. Despediu-se dos ouvintes e atravessou a rua, quase ao meu lado. Fingi estar novamente em minha pressa cotidiana e entrei numa loja qualquer. Minutos depois, ele também entrou.
 
Sem licença, pediu a atenção dos clientes, funcionários, abriu sua maleta e pediu ajuda. Poucos se importaram, cheios de suas vidas, perspectivas e crenças, como eu. Tentei ser um deles, mas não deu. Parei e ouvi. Dei minha parca contribuição e fui abençoada, em retribuição.
 
Entre os que pareciam não estar ali, alguém lhe jogou a arrogância comum dos humanos na face. Em resposta, ele usou de altivez e desenrolou todo seu novelo. Ficamos ali, acompanhando o duelo dos dois, que não tinha fim. Em seu falatório, disse não se surpreender mais com o mundo. As estradas, as dores, as humilhações e desilusões já haviam lhe ensinado tudo. Desaprendeu a ser gente, disse. Preferia lidar com bichos. "A maldade é o que alimenta esse tempo. Os bons silenciam para não serem tragados", disparou.
 
Senti covardia e compaixão se apossando de mim. Penso, aqui comigo, o que faz dos homens irmãos? O que faz alguém julgar pela roupa que cobre um corpo, pelo sapato que se usa, pelo suor ou pelo perfume?
 
O que faz um semelhante cuspir veneno no outro pela cor da pele ou pelo dinheiro que se leva no bolso? O que faz de mim alguém melhor do que aquele homem? É triste o desconhecimento humano a respeito da própria raça e dos motivos de estarmos aqui, no mesmo tempo, no mesmo espaço.
 
Tudo finda, tudo é tão breve, tudo acaba em pó. Voltei para casa lembrando das palavras ásperas que o moço da loja jogou no pedinte e das palavras boas que ele me lançou. Quem na verdade é o miserável dos dois?
 
Não sei se mereço as bênçãos que recebi, através dele. No entanto, me sinto bem com o presente. Do moço rude nem lembro o rosto ou os panos que lhe cobriam de arrogância. Mas aquele velho _ que seguiu seu caminho com sua história e sua velha bicicleta _ sei que irá comigo.

O circo 13:08

Tarde calma, com os segundos atravessados em meio aos ponteiros mais poderosos do relógio. Maresia embalando o vento, encrespando os cabelos dos coqueiros, assanhando a areia. Paralelepípedos sobrevivendo ao fogo da terra. E tudo bendizendo a rotina do vilarejo. 

Em meio às cores simples do cenário, de repente o alto-falante anunciava a chegada da festa.  

Largávamos as tranças das redes, que surgiam das mãos de "Seu" Marinho _ velho pescador, exímio conhecedor dos segredos do mundo. Em dias assim, éramos seus ajudantes, aprendizes de redeiros, entre as muitas descobertas das férias. Mas nada seria mais interessante que aquele anúncio, às quatro da tarde. "Hoje tem espetáculo? Tem, sim senhor!".  

Molecada solta, com chinelos gastos nos pés, arrastando carrinhos de latões, puxados com barbantes. Meninos e meninas de todos os tipos e tamanhos. Loiros, mulatos, cafuzos. Pequeninos, graúdos, barrigudos, bem cuidados. Em São José da Coroa Grande as diferenças eram esquecidas. E, afinal, éramos crianças. Criança vê melhor o que importa nessa vida. Amizade independia de cor, credo, cara limpa, suja ou sapatos engraxados. Valiam mesmo a camaradagem, as criações mirabolantes, a partilha de tudo _ dos piões de madeira à bicicleta ganha no Natal.  

O grupo se avolumava a cada esquina. Eu e meus irmãos nos jogávamos no meio da farra. Quem engrossasse o canto do palhaço ganhava balas e balões coloridos. Pois bem, enchíamos a rua de gritos desafinados e os bolsos de guloseimas. Carnaval desfilando no peito.  

Atrás do bloco, carros cambaleando, carregados de bailarinas com roupas desbotadas, maquiagem pobre, purpurina fingindo ser ouro em saias de tule amarelado. Cachorros, macacos, leões cansados. Música desencontrada. Tubas, cornetas, tambores... e nós. Finda a exibição no passeio público, voltávamos correndo para casa. Era preciso garantir o ingresso.  
Roupa nova, passada sobre a cama, imaginação prestes a escapar, sem destino e sem volta. 

À entrada do espetáculo, pipoca, maçãs carameladas, algodão-doce. Entre os mil furos da lona amarela e azul surgiam estrelas, geradas pelos refletores. Dentro, armações de ferro e madeira separando o palco do público.  

Não lembro de algo me extasiar mais do que aquelas noites no circo. Todos os portais da fantasia se abriam à nossa frente. Mergulhávamos sem medo, esquecidos que o mundo lá fora nos esperava, com pressa e cheio de planos para nos fazer adultos.  

O encanto foi tão forte que permanece comigo, na caixinha das melhores lembranças. Trago a festa bem guardada, onde o tempo não pode tocar. Sempre que preciso, lanço mão da velha cantoria, me cubro de cores, me jogo no mundo e transformo a vida em espetáculo.

O velhinho cor-de-rosa 13:03

O mundo parecia bem maior, em meus catorze anos. Maior e mais difícil de vencer. E aqueles dias me faziam virar uma conchinha, em meio à dor da perda do meu melhor irmão, aos vinte anos de idade. Tudo havia virado de cabeça para baixo, como se um tufão fizesse a perfeição virar caos, de uma hora para a outra. Assim, de repente, comecei a duvidar das coisas mais sólidas, nas quais sempre acreditei.  

Foi num desses dias com cheiro, peso e cor de chumbo, que conheci aquele homem. O colégio - onde ele havia estudado, muitos anos antes de mim - era dirigido por pastores evangélicos, de origem norte-americana. Tudo que uma menina, criada como passarinho solto, não queria, não precisava.  

Muros altos, arquitetura romana, portões de madeira nobre. Paredes gigantescas, pintadas de cinza. Portas de vermelho vivo, sangue. Eu e o prédio, em cinza e vermelho, guardando crianças perdidas, histórias e um tempo que jamais andaria para trás. Minha rotina era escapar dos bedéis, dos cultos diários, das aulas mornas, e me refugiar no jardim - escondido atrás da marcenaria, nos fundos do colégio. Em casa, procurava fingir normalidade, em nome dos quase-sorrisos que minha mãe tentava nos oferecer, para que continuássemos acreditando nos anjos. Para que ela voltasse a acreditar.  

Naquele dia, sentei no alto do muro e fiquei esperando o intervalo passar - olhando o Capibaribe correr lento, em meio ao asfalto fervente das dez da manhã. Avisaram: ele chegou. Terno azul marinho, pasta de couro na mão, nuvens no cabelo e pele cor-de-rosa. Sorriso tranqüilo, de quem tem o mundo mais colorido, de quem nunca perdeu a esperança, os sonhos ou o melhor irmão.  

Pareciam abelhas, meus colegas zanzando em sua volta. Professores virando meninos, jornalistas, todo mundo querendo estar perto. O nome era pomposo e me lembrava a biblioteca de meu pai, onde pela primeira vez li o "Casa Grande e Senzala", escrito por ele _ numa edição amarelada, em papel grosso e palavras antigas soando como novinhas em folha. Gilberto Freyre, o nome, não combinava com aquele senhor de andar lento, corpo frágil e jeito tão feliz.  

Resolvi também me atrever e chegar perto. Desci de minha ingênua torre adolescente e o esperei no caminho para o auditório. Ao perceber que ele me olhava, enquanto chegava em minha história, sorri _ sem medo de me entregar à alegria. Passou de leve a mão em meus cabelos e seguiu para a palestra, num auditório cheio de jovens, sonhadores como eu.  

Depois daquele encontro com o velhinho cor-de-rosa, ouvindo tudo que ele fez, construiu e perdeu, sem temer tempestades, tufões e maremotos, entendi que os anjos de minha mãe existiam. Voltei a acreditar em mim e nas histórias que me contaram. E não deixei mais de escrever.

Calor em noite fria 12:59

A noite era fria, mas fria mesmo, daquelas de fazer o cristão pensar que os ossos estavam prontos para se despedaçarem. O cansaço, portanto, era dobrado. Acostumada aos quarenta graus a pino sobre a cabeça, a sensação era ainda mais forte para mim. Cheguei em casa, fechei janelas e portas, liguei o chuveiro na temperatura mais quente possível e esperei a casa inteira _ que não era mais que uma caixinha de fósforos _ virar sauna.
 
E então, o toque inconfundível do celular me despertou do quase êxtase de me sentir aquecida novamente. Quando já me preparava para desfrutar do jato quente, fui obrigada a largar tudo e correr para o quarto. Até achar o bendito telefone, pensei que sofreria um choque térmico, partiria mesmo ao meio e passaria dessa para melhor.
 
Pressa e irritação ao atender a chamada. Silêncio do lado de lá e, em seguida, o barulhinho chato de ligação finda. Humor beirando o caos. Nervos à flor da pele. A caminho do chuveiro, toca de novo o telefone. A recepção já não foi a mesma e eu queria realmente que o ser insistente do outro lado percebesse que eu estava para poucos amigos.
 
Enfim, ouço a respiração ofegante do lado de lá, com a voz infantil, inconfundível, vinda de tão longe. “Titia?”. Coração aos saltos. Entre as minhas declarações de amor, saudade e indagações sobre onde ela estaria, com quem e o que queria, mais uma vez o silêncio e a respiração de quem está mesmo fazendo algo errado.
 
Insisti nas perguntas. “Estou em casa. Não fui eu que liguei. Apertei no botão verde e você me ligou de volta, tia”. Entendi o porquê da respiração acelerada e sorri. A ligação era clandestina e me trazia a paz considerada impossível minutos antes. Como aquela menininha, com apenas seis anos de vida, tinha tanto poder sobre mim? Como era capaz de me fazer tão bem e domar todas as minhas inquietações assim?
 
Tentei falar, com mais calma dessa vez, com toda a doçura do mundo. Busquei as melhores palavras, as mais lindas, as mais fáceis. E quis prolongar aqueles segundos pela vida toda. Ela interrompeu quando eu ainda elaborava a primeira frase: “Eita, mamãe está vindo... Tô acabando com os créditos dela... Vou desligar”. A confissão, feita num quase sussurro, me arrancou a melhor gargalhada e dizimou, num sopapo, todas as atribulações acumuladas durante o dia. Era mesmo uma ligação clandestina, das boas. O barulhinho do telefone dessa vez fez carinho, tomou conta de mim e foi se misturando à batucadinha no peito. Já não sabia se o calor que me tomava naquele instante era do quarto cheio de fumaça ou se a noite havia decidido me mandar a receita certa para recobrar a serenidade e o bem-estar.
 
Entrei no chuveiro com um sorriso colado no rosto. Fui dormir aquecida, com a sensação de que o mundo inteiro ao meu redor havia vencido o frio e descansava em paz.

O gigante dos meus dias 12:55

Ele cheirava a mato e lavanda. Tinha a pele áspera, pintada pelo sol forte. Voz forte de trovão, com a mansidão do vento leve nos fins de tarde. Tudo nele impressionava. Desde o chapéu ao chinelo de couro cru, que nunca ficava gasto. Eu admirava aquele homem, olhava de baixo para cima, como quem encara um gigante. Porém, o que mais me chamava a atenção eram os imensos olhos castanhos _ que falavam alto, gritavam palavras de amor, sem emitir um só gemido. Era grande o meu avô.

Um dia, sem que ele percebesse, eu invadi sua vida e quase fico por lá, sem achar o caminho de volta. Sem querer achar, sem tentar, sem qualquer motivo que me fizesse puxar o trinco e trocar de cenário.

Sentei entre a cômoda antiga e a cama de campanha que havia no quarto pequeno _ onde ele ficava durante os verões _ e fui folheando as páginas curtas, amarradas com barbante, que me jogaram na história mais linda que conheci. Caderninhos incontáveis guardados nas gavetas, encapados com papel camurça de todas as cores.

Tudo anotado ali, com tinta preta. Seus primeiros anos na escola, suas descobertas nas ruas estreitas beirando as pontes, seus “idílios” (eu amei aquela palavra antiga e a incorporei ao meu vocabulário de menina, arrancando gargalhadas dos mais velhos)...

O casamento com a menina tão mais jovem e com perfil grego em meio à caatinga distante. O nascimento dos filhos, as tarefas e os percalços em seu caminho de pai extremoso e preocupado com as escolhas de cada um. Os dias de chuva no sertão, levando mulheres e meninos às ruas, enlouquecidos com a água vinda do céu. Tudo bem guardado nas páginas que começavam a ser devoradas pelas traças. Traças deveriam ser extintas, pensei. Elas comem as vidas da gente e tudo que ficou delas.

Um dia ele foi embora. Sem aviso prévio, sem qualquer sinal de que o sopro que lhe empurrava a vida estava chegando ao fim. Guardei comigo sua herança: os cadernos vermelhos de páginas amarelas, o barbante, o cheiro de mato e lavanda e o amor imenso que me banha o corpo através do sangue.

Canto de liberdade 12:51

Enquanto a maioria aproveitava o sol e os banhos no riacho, ele andava léguas antes do sol nascer. Saíam, os dois filhos, o pai e um tio, com chinelos gastos, panos protegendo a cabeça, chapéu de abas largas e facões na cintura. Prontos para buscar a sobrevivência, nos cortes grosseiros e firmes nos talos do canavial imenso.
 

Caminhos estreitos, folhas verdes finas, dançando e apontando pro alto. Quase não dava para ver o céu. Na estrada o caminhão ia recolhendo um a um. Ele se sentia mais bicho que menino. Então, cantava pra dentro, como havia aprendido com a mãe.
 

Um dia, chegou a arruado onde ele morava uma escola. Ele foi, achando que não ficaria nem um dia sequer ali, parado, sentado numa cadeira tosca, ouvindo alguém lhe falar de coisas que ele jamais veria. A sala era pequena, com poucos lugares e dois velhos candeeiros queimando querosene pendurados nas paredes. A algazarra misturava vozes de meninos e quase homens, querendo descobrir onde aquilo tudo levaria.
 

Foi então que ela entrou: a professora. Moça mais bonita que já conhecera. Quase criança, se medissem os anos pelo tamanho do corpo. Quase mulher, se contassem os dias pelo olhar de alguém. Com paciência, cuidado e falando de coisas que ele bem conhecia _ riacho, cana caiana, frutas da estação, broa de milho, ela foi mostrando como para cada coisa vivida existiam sinais. Era, talvez, a porta que lhe mostraria a saída para a vida sonhada. Aprendeu a ler, escrever e contar. Aprendeu mais sobre o que existia do lado de fora das cercas. Criou asas. Juntou coragem, moedas e duas mudas de roupas e saiu dali.
 

Anos depois, com calos nas mãos e na alma velha, voltou à usina. Viu ao longe o canavial em chamas, meninos na mesma função e buscou o riacho. Por tanto tempo viveu ali e jamais pôde aproveitar aquele banho. Ensaiou o primeiro contato, tirou os sapatos e se deixou afundar nas águas geladas. O peito acelerou tanto que a garganta não segurou o que vinha guardando ali dentro. As mãos tentaram jogar o riacho pro céu. O canto de menino, que sempre retumbou dentro dele, saiu aliviado, feliz.
 

Só agora, tanto tempo depois do primeiro dia diante das letras _ que lhe deram rodas aos pés e asas para todos os sonhos _ ele podia ser criança e festejar a vida, com toda a liberdade.