Um dedo de prosa
Germana Telles
O velhinho cor-de-rosa | 13:03 |
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O mundo parecia bem maior, em meus catorze anos. Maior e mais difícil de vencer. E aqueles dias me faziam virar uma conchinha, em meio à dor da perda do meu melhor irmão, aos vinte anos de idade. Tudo havia virado de cabeça para baixo, como se um tufão fizesse a perfeição virar caos, de uma hora para a outra. Assim, de repente, comecei a duvidar das coisas mais sólidas, nas quais sempre acreditei.
Foi num desses dias com cheiro, peso e cor de chumbo, que conheci aquele homem. O colégio - onde ele havia estudado, muitos anos antes de mim - era dirigido por pastores evangélicos, de origem norte-americana. Tudo que uma menina, criada como passarinho solto, não queria, não precisava.
Muros altos, arquitetura romana, portões de madeira nobre. Paredes gigantescas, pintadas de cinza. Portas de vermelho vivo, sangue. Eu e o prédio, em cinza e vermelho, guardando crianças perdidas, histórias e um tempo que jamais andaria para trás. Minha rotina era escapar dos bedéis, dos cultos diários, das aulas mornas, e me refugiar no jardim - escondido atrás da marcenaria, nos fundos do colégio. Em casa, procurava fingir normalidade, em nome dos quase-sorrisos que minha mãe tentava nos oferecer, para que continuássemos acreditando nos anjos. Para que ela voltasse a acreditar.
Naquele dia, sentei no alto do muro e fiquei esperando o intervalo passar - olhando o Capibaribe correr lento, em meio ao asfalto fervente das dez da manhã. Avisaram: ele chegou. Terno azul marinho, pasta de couro na mão, nuvens no cabelo e pele cor-de-rosa. Sorriso tranqüilo, de quem tem o mundo mais colorido, de quem nunca perdeu a esperança, os sonhos ou o melhor irmão.
Pareciam abelhas, meus colegas zanzando em sua volta. Professores virando meninos, jornalistas, todo mundo querendo estar perto. O nome era pomposo e me lembrava a biblioteca de meu pai, onde pela primeira vez li o "Casa Grande e Senzala", escrito por ele _ numa edição amarelada, em papel grosso e palavras antigas soando como novinhas em folha. Gilberto Freyre, o nome, não combinava com aquele senhor de andar lento, corpo frágil e jeito tão feliz.
Resolvi também me atrever e chegar perto. Desci de minha ingênua torre adolescente e o esperei no caminho para o auditório. Ao perceber que ele me olhava, enquanto chegava em minha história, sorri _ sem medo de me entregar à alegria. Passou de leve a mão em meus cabelos e seguiu para a palestra, num auditório cheio de jovens, sonhadores como eu.
Depois daquele encontro com o velhinho cor-de-rosa, ouvindo tudo que ele fez, construiu e perdeu, sem temer tempestades, tufões e maremotos, entendi que os anjos de minha mãe existiam. Voltei a acreditar em mim e nas histórias que me contaram. E não deixei mais de escrever.
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