Um dedo de prosa

Germana Telles

Verbos de ligação 23:57

Era como discutir o sal e o açúcar. Como pensar em barro seco e molhado, decidir entre a polenta e o sabugo verde do milho. Coisas distintas, mas tão próximas. Éramos assim, nós dois. E ele sempre insistia que éramos iguais. Eu e o meu melhor namorado. Se é que existe o melhor entre os amores. Amores são amores, ora essa... Não é, não?

Mas nós sempre discutíamos sobre tudo. Era falar em azul, ele vinha com vermelho. Com um charme infernal. E isso se prolongava, até que um dia a coisa descambou do simples pro complexo. As mulheres tendem a ser pura volúpia e os homens gostam mesmo é do preto no branco: do futebol com cerveja, amigos e saldos bancários. Gostam de mostrar que os filhos são filhos mesmo da grana que pingou no orçamento.

Nada de leite do peito alimentando as crias, de colo quente de mãe, de fraldas descartáveis bem aprumadas, de febres vigiadas, brotoejas curadas com pasta d’água, de mãozinhas grudadas com os filhotes, choros sem explicação. Eles são os provedores e isso é o que importa.

Então, descambamos para os planos de família _ eu e meu futuro marido. Apaixonados, lembramos do nosso primeiro encontro. Eu, começando a vida de jornalista, em meus vinte e poucos anos _ achando que o mundo inteiro seria refém dos meus sonhos. Ele, mais novo do que eu, achando que aquela menina segura, com caderno de poesia no colo, em meio à reunião política (que prometia salvar a comunidade) era a mais bela pérola da literatura brasileira.

Nos apaixonamos. E dali para a boneca de louça, depois de ter minha mãe como cúmplice, foi um pulo. Ganhei a boneca, amei, dividi os poemas num barco no meio do Capibaribe e disse: vou te namorar para sempre. O que nós não sabíamos é que, entre os sonhos do Che (meus), os poemas, a barba dele sempre por fazer e minha boneca de louça, havia nossa vontade (mútua) de ganhar o mundo.

Ele queria ter. Eu, ser. Entre o ter e o ser _ esquecemos _ havia linha tênue. Ser bom era ter boas intenções. Ter boas intenções implicava em querer ser algo bom. Ter o castelo dos sonhos implicava, por conseguinte, em ser bom em tudo que se fizesse. Ser bom em tudo significava ter vontade e competência. Isso para mim.

Para ele, ser bom era acumular bens. Ter, ter, ter. Não importava como. E isso se conseguia mostrando ao mundo o que não se era realmente, mas o que o mundo gostaria de ver.

Em meio aos dois verbos _ ser e ter_ nos perdemos. Ele, por querer ter demais. Eu, por querer me fartar de ser. Crescer nisso, ganhar a mim e ao mundo em tudo que o mundo e a vida me dessem. Ele, por querer se fartar daquilo: ganhar ao mundo e tudo que ele pudesse acumular através disso. Sem ressalvas.

Um dia, ele se viu envolvido num caminho bem longe do meu. E eu não sabia mais como encontrar o rastro deixado por ele nos primeiros dias.

O mundo girou e cansamos de tentar encontrar portais que nos levassem de volta. Ficamos assim, entre o ser e o ter. Acabamos por perder o maior tesouro que a vida nos deu. A vontade de inventar o que já existia foi o mais cruel dos carrascos: envenenou, dia após dia, o grande amor de nossas vidas. E nos fez entender todos os verbos de ligação, após a perda que nos amarrou para sempre: ser, estar, parecer, permanecer... Ficar.