Um dedo de prosa

Germana Telles

No meio do caminho 22:55

Meio-dia, sol de rachar e quatro meninos dispostos a desafiar as impossibilidades a qualquer custo. A missão era mais importante que os obstáculos e eles sabiam disso, apesar do pouco tempo no mundo.
Enquanto os mais velhos apressavam cada vez mais os passos, os menores iam mais lentos, aproveitando tudo que viam pelo caminho. E não era pouco. Tinha de tudo naquela estrada. Pedra grande, pedra pequena, flor rasteira, flor estranha, espinho, barro, resto de bicho e, de vez em quando, carroças, bodes e lagartos enormes.
Com perninhas de sabiá, a menorzinha fazia cantar as sandálias, tentando pegar o que de melhor havia entre aquilo tudo e acompanhar a pisada do irmão. O silêncio só era quebrado por alguns assovios do garoto, buscando imitar os pássaros ou chamar o cachorro, que vinha atrás, se perdia e os achava, cambaleando de cansaço. Valente, o bichinho não desistia também, embora desconhecesse o rumo da viagem e o porquê.
Eram cinco, na verdade. Porque aquele cachorro era mais esperto que muita gente, diziam. “Não fala para não ir à escola”, sempre lembrava o pai.
Nada levavam além da certeza de que era preciso seguir em frente, apesar da fome, do calor, da sede e das bolhas nos pés. Além das brotoejas, que brotavam às centenas, no pescoço, atrás das orelhas e nas costas. Aquilo coçava que era um inferno. Doía, coçava, ardia e alfinetava a pele, por baixo das roupas.
Eles não desistiam. Iriam até o fim. E assim foram, até que o mais velho avistou o que queriam. E pediu que os irmãos apressassem o passo. Correram e quase cortaram os pés, em meio aos pedregulhos.
Entraram pelo mato, em meio às urtigas, carrapateiras e ao desconhecido, atrás do maior. É ali, peguem tudo que puderem levar, nas mãos e nos bolsos.
Ágeis, foram catando os matinhos que o irmão mostrava e enchendo a roupa. Cheirava forte aquela erva. Cheiro bom, como se a terra deixasse ali sua seiva, sua essência. Dava vontade até de comer, pelo cheiro e pelo vazio na barriga. Mas não podiam desperdiçar. Quanto mais, melhor, lhes falaram em casa, antes da saída, quando os galos ainda cantavam e o sol era um tímido rasgo no céu.
Fizeram o caminho de volta bem mais animados e até ensaiaram um canto qualquer, aprendido nas inúmeras andanças, naquele mundo que era só deles.
Ao dobrarem a última curva, viram a mãe na soleira, com a mão sobre a testa, tentando busca-los à distância. O aceno rápido da mulher os fez correr ainda mais. Podia não dar tempo e tudo teria sido em vão.
Entregaram tudo e sacudiram cada pedaço de pano, para ver se tinham entregue todo o mato colhido. O chá foi feito, mas o caçula não resistiu e nem chegou a tomar do remédio trazido pelos irmãos. O cheiro da terra ficou no ar e não foi capaz de estancar as lágrimas dos pequenos, que sentiram a dor mais amarga de se provar nessa vida. A fome passou, os calos adormeceram e a noite chegou mais cedo, deixando para sempre o sol do meio-dia queimando a retina. Naquele momento, a esperança virou pó.

Inédito 04:37

Era de nome que falavam. Dos nomes das pessoas, dos bichos, das coisas, mas principalmente das pessoas. Ou melhor, do seu nome.
Ele não gostava da escolha, nem poderia, coitado. Danada de decisão do pai, que se abestalhou com uma palavra bonita e jogou no filho, como se fosse marca, para a vida toda.
A moça _ que mal havia chegado da cidade grande e tentava mudar as coisas em meio àquele sertão perdido _ lhe dizia para dar nome ao cachorro da família, que sempre atendia aos assovios, e só.
Ele precisa de um nome, precisa de um nome, dizia a moça. Quem precisava de nome novo era ele, pensava. Onde já se viu batizar o filho de “Inédito”? Alguém, além dele, daquele menino franzino, de andar meio torto, sozinho em meio à caatinga, brincando com um cachorro sem nome, seria Inédito? É claro que não, respondia (antes mesmo de dar chance a outra explicação enfadonha), desconcertado, enfurecido, enquanto chutava o barro do chão.
Acabou se contentando com o “Detinho”, que sua santa mãe providenciou para pôr no lugar do Inédito, que ela não sabia pronunciar. “É muita letra pra um nome só”, dizia entre sorrisos, quase sem dentes.
Pela vontade da mãe, ele seria João, Antônio, Pedro, José. Qualquer nome que coubesse no juízo de um cristão e na boca de quem chamasse. Menos Inédito.
A moça bem que tentava controlar o sorriso. Ria mais pela fúria declarada do menino do que da infelicidade de levar pela vida aquela pecha ou da ingenuidade do pai, que achou fazer um favor à criança com nome lindo daquele.
Pense que no mundo inteiro, só há você. Você foi o primeiro, tentava a moça. E até que aquilo fazia sentido, combinava com a estranheza toda.
Não adiantava. O menino não levantava os olhos. Só batia com força nas pedras, socava o barro vermelho e balançava a cabeça, em negação.
Moça, a senhora tem nome bonito, de princesa _ Maria Amália. Olhe só, que nome mais do lindo! Eu nem ligo mais para o meu, até esqueci dele. Só lembrei agora porque a senhora disse pra dar nome ao cachorro. Mas pra que cachorro precisa de nome? Ele responde no assovio e pronto. Precisa de nome não, declarava, como quem implanta uma lei, a sua lei, naquele lugar _ que mesmo pobre, perdido no meio do mundo, era seu.
O cachorro chegou junto, olhou a criança, cheirou suas mãos e abanou o rabo, pedindo brinquedo, folia, afeto. Sem nome, era mais feliz assim.
A moça desistiu de tentar convencer aquele menino, tão mais forte que ela e tão calejado pela vida. Foi lá dentro da casa, onde ergueria o seu mundo, pegou o instrumento e desandou a tocar.
Sem licença ou despedidas, o menino levantou, assoviou e correu pelo terreiro, com o cachorro sem nome.
Era verdade o que ele dizia. Para que complicar as coisas? Ele era o menino, que brincava com o cachorro, no sertão que era todo seu. Ninguém precisava mudar aquilo, porque daquele jeito tudo corria bem, do modo que eles sabiam, da forma que conheciam o que nunca foi dito, o nome que não se falava: a felicidade.

Inspiração 13:54

A força que morava naqueles olhos me deixava sem graça, mas me empurrava para a vida com a certeza de que eu poderia chegar mais perto de Deus, através dela.
Jamais conheci alguém tão grande, tão determinado, tão generoso e desprendido de ambições desmedidas quanto ela. Vivia e renascia todos os dias pelo amor que havia em si e que ela, sem medida, entregava a quem passasse por perto.
A formiguinha ligeira, incansável em sua labuta, acordando todos os dias antes do sol, era a corda que nos amarrava num círculo iluminado de segurança e fé. Sabíamos que com ela, estando ali, dividindo o lar e os dias com ela, seríamos felizes.
Não importavam os obstáculos, as tristezas que vez em quando batiam à nossa porta, as distâncias que precisamos vencer, tantas vezes, em busca de paz. Tudo com ela era bom. E tudo começava e terminava de maneira tão fácil de se levar, com uma simplicidade tão desconcertante, que nos comovia, ao vê-la agarrar a vida com tanta vontade.
Até nos dias piores, _diante da perda do filho, da doença, que lhe roubou o direito de andar, das saudades que ela acumulou em sua estrada _ ela não desdisse a sua fé, a sua força. Eu queria ter aprendido com ela. Era o que eu mais queria. Aquela capacidade de ser gente, de acreditar nas outras gentes que nem sempre mereciam o seu afeto e que sempre, sempre, tinham o seu abraço, o seu sorriso e o seu perdão.
Nem sei se aquilo que ela oferecia era mesmo perdão. Talvez fosse o esquecimento, a falta de registro do lado negativo de qualquer coisa, qualquer pessoa. Sei que queria ter aprendido com ela.
Sou pequena demais, no entanto, e perdi a oportunidade de fazer do meu caminho algo tão melhor. Eu devia ter seguido seus conselhos, ter anotado cada um deles, ter ido dormir na hora que ela falasse, ter respeitado mais o meu tempo, ter aprendido a tocar melhor o piano, ter largado o cigarro, ter prestado atenção aos caminhos que escolhi e que não estavam em seus planos.
Juro que eu não sabia que doeria tanto crescer e ter que tocar a vida sem aquela luz que jorrava em minha volta e me fazia tão feliz. Sei que se pudesse voltar atrás, jamais teria lhe dito um não, jamais teria me atrasado para os almoços de domingo (quando ela sempre estava pronta, sentada na rede, com seu melhor vestido, cabelos bem penteados, olhar ansioso, me esperando chegar).
Queria seus recados em meu celular, sempre dizendo antes quem era (“Minha filha, sou eu, sua mãe”) _ como se eu não soubesse, como se fosse preciso _ me deixando recomendações ou contando algo corriqueiro, que ela fazia especial e repartia conosco, extensões do seu corpo, da sua vida.
Busco, inquieta, outro olhar como aquele, outra voz como aquela, outra luz que me faça feliz como naqueles melhores dias da minha vida. Tenho a fé, que ela me deixou de herança, como guia. Vou, abrindo trilhas. Hei de achar a inspiração que me devolva a capacidade de atravessar a vida com um sorriso nos lábios, o coração leve e as mãos sempre prontas para acolher, sem esperar recompensa.

Por que? 11:58

É engraçado como a gente vai mudando os conceitos, à medida que o tempo passa. Temos fases, como a lua (como diria a Cecília), e tudo começa na idade do por que (?).


Acabo de constatar isso, conversando com amiga, que está na fase do “mais ou menos”, “sei lá” e “pode ser”. Fase chata, já adianto, para aqueles que certamente também deverão experimentá-la.

No por que, tudo é novidade. A gente está como brinquedo novo, que acabou de sair da caixa, olhando tudo em volta com olhos de descobridor. Por isso, não nos aguentamos em meio a tantos rostos desconhecidos, tantos lugares novos, tanto mistério. Desandamos a mandar por ques pra tudo quanto é lado, irritamos pais, tios e irmãos, mas vale a pena.

É por uma boa causa que vivemos as interrogações: para que possamos começar a experimentar a vida. Bom lembrar: nunca devemos nos esquivar dos por ques dos pequenos. Nada de dizer “porque sim”, “porque não”, “porque é assim e pronto”, quando surgirem aquelas perguntinhas básicas: “Mãe, por que a Terra gira e eu não fico tonto?” ou “Por que eu não posso pular da janela?” ou ainda “Por que aquela criança mora na rua e eu tenho um quarto só pra mim?”.

Os por ques sempre têm um porquê. Merecem ser respondidos, devem ser respondidos, com clareza e verdade, para que os pequenos tenham a visão certa das coisas, criem valores, abram seus olhos e seu coração para o mundo, para o outro, para o semelhante e o desigual.

Muitos desses por ques também servem para nos dar um belo “sacode”. É chato ter que olhar o óbvio em nossa frente, ver face a face nossos erros, nossas fraquezas, nossa falta de sensibilidade gritando à nossa frente, batendo em nosso estômago como um soco, após um “por que?” lançado por uma criança.

Adoro a fase do “por que?”, que já me chegou quatro vezes, através de quatro menininhas minhas e lindas. Mesmo quando fiquei muito irritada, tendo que controlar a metralhadora mandando por que, por que, por que, numa velocidade impressionante, e eu me vendo louca, tendo que buscar a resposta mais clara possível para o que não costumamos nos preocupar em explicar.

Mas a fase do “mais ou menos”, “sei lá” e “pode ser” é insuportável. Credo. Ou uma coisa é ou não é. Ou é boa ou é ruim. Ou é feia ou bonita. Ou é claro ou é escuro, frio ou quente, alegre ou triste. Não é mesmo?

Ou alguém quer ou não quer uma coisa. Ou vai ou não vai. Ou serve ou não. Sei lá o escambal. Sei lá...

Pior ainda é quando vem o “pode ser”, que na verdade quer dizer “não pode ser, não dá, não quero, mas vou te cozinhar mais um pouquinho”. Pode ser é o pior, mesmo.

Por isso, vou lançar mão da sabedoria infantil agora, sempre que me jogarem um mais ou menos, pode ser ou sei lá. Criatura terá como troco um belo “por que” e não vale mentir de volta, eu já conheço bem o truque.

Quem partiu já vem 11:17

“Quem partiu já vem, quem partiu já vem”. O aviso chegava, em meio às arvores do quintal, no muro que cercava a casa e pelas brechas das janelas, enchendo nosso ninho de esperança. Na verdade, tudo que aquele canto fino do pássaro nos dizia mesmo era que algo mudaria naquelas redondezas, no caso, para nós. Era isso, pelo menos, que falava a minha mãe, convicta das suas crenças.


Nós também passamos a acreditar que o bem-te-vi, dono daquele canto e fiel transmissor dos presságios, era profeta.

Aquilo mexia, e ainda mexe, com a gente. O dia parecia ser especial quando ele vinha. As tarefas ganhavam mais sentido, mais urgência. Qualquer coisa saindo um centímetro da normalidade ganhava tom de sinal. E mesmo que nunca uma coisa possa ter sido influência do passarinho, algo sempre acontecia, alguém de longe sempre dava sinal de vida, chegava carta, notícia qualquer de parente ou amigo, renovando as nossas crenças.

Tenho vivido dias de bem-te-vi na janela. Hoje acordei ouvindo um deles, no quintal do vizinho _ que faz reforma interminável em sua casa. Minha alma parece acompanhar a reforma e tomou susto grande com o “quem partiu já vem” ao amanhecer.

Passamos a vida inteira buscando construir sobre bases sólidas, achamos que encontramos o caminho, a rota certa, e investimos o melhor que há em nós nessa aposta, na certeza de que vamos deixar algo impresso _ uma história, uns dias, uns amigos, uns parentes, uns filhos, um trabalho, um livro, um conselho qualquer, um amor.

Cada passo, escolha, renúncia, dinheiro guardado, dinheiro gasto, estrada vencida, sonho plantado. Tudo passa a girar em torno dessa obra a que nos propomos ser autores e que se transforma no sentido de existirmos.

Acordar, levantar, comer, se mover, plantar, respirar. Tudo é agulha e linha na costura desse plano bem traçado, para que a vida seja feliz, plena, dentro do que estabelecemos como a meta principal de estarmos aqui.

Um dia, porém, a obra atrasa. Faltam tijolos, argamassa, concreto, telhas, fios, canos. Falta querência, vontade, sentido. E quando menos esperamos, tudo precisa ser interrompido, a obra fica inacabada e um bem-te-vi bate à janela com o seu “quem partiu já vem”.

Olhei o quintal do vizinho, ouvi o passarinho perambulando lá fora, respirei fundo e fiz as minhas orações da manhã, pedindo a Deus que seja bom presságio esse canto fino, em meio ao inverno rigoroso de agosto.

“Mesmo que a gente chore, maldiga, fique com muita raiva do destino, ele sempre é o dono da verdade. Ele sabe o que faz e o que é melhor para nós. Nunca pense que foi a última vez, que foi o último gole, o último pão. Tudo se repete nessa vida, não importa o cenário ou quem está em cena, para que possamos retomar o nosso caminho”, diria a minha mãe.

Não vou duvidar do que ela me faria acreditar. Ela sempre acertou em tudo. Até nos dias em que nos fazia levantar mais contentes, bendizendo a manhã que chegava com o canto de um bichinho minúsculo, avisando: “Quem partiu já vem, quem partiu já vem”.

O melhor presente 04:37

Desde criança ela quis muito ter o que seria o melhor presente do mundo. Pedia ao pai insistentemente. Fazia as propostas mais difíceis de serem cumpridas _ como ficar sem presente de Natal por toda a vida ou abrir mão do sorvete no fim de semana. Nada adiantava. Aquela casa não era lugar para cachorros.
Tinha raiva da vizinha, que ainda colocava mais lenha na fogueira: “Cachorro só faz sujeira, bagunça tudo, fica doente e ainda foge, deixando todo mundo maluco”.

O que a futriqueira não sabia é que cachorros pulavam alto, brincavam de tudo que se poderia imaginar, não se cansavam de querer agradar, eram amigos como poucos e ainda entendiam os recados silenciosos, se por acaso ela estivesse triste e apenas quisesse ficar quietinha, ali no canto, sem esboçar gesto algum.

Não importava, eles não queriam e pronto. Tantas tentativas em vão a fizeram esquecer o pedido. Um dia, porém, ela cresceu e a aquele sonho ficou possível. Um amigo, sabendo do seu desejo de menina, nem perguntou se caberia ou não cachorro naquela casa. Levou o bichinho, dentro de uma caixa de papelão.
Amor instantâneo, recíproco e arrebatador. “É menina”, disse o amigo. Pretinha, com uma mancha branca minúscula no peito, patas redondinhas e olhar de quem pede: “Me cuida”. Chorava e balançava o rabo, buscava refúgio entre as roupas da nova dona, que quase explodia de tanto querer bem.

Não houve quem não a quisesse. Conquistou todo mundo com aqueles olhos cor de ameixa e o rebolado desajeitado, enquanto tentava se equilibrar sobre as quatro patas. Os pais acabaram se apaixonando também e comprariam qualquer briga para mantê-la em casa. Fiel, acompanhava o pai, todas as noites, quando ele se recolhia, e dormia sobre os chinelos. Ninguém perturbaria o sono. Era a criança, a parceira, ensinando lealdade e afeto aos donos daquela casa.

Um dia a moça precisou ir morar muito longe. Sem despedidas, recomendou cuidados e disse que voltaria logo, para muitas tardes de caminhada à beira-mar e brincadeiras sem hora para acabar. Não pôde cumprir a promessa. Tuca não segurou a distância. Foi deixando de brincar, de atender aos chamados, de comer... e um dia não acordou mais. Morreu de saudade.

A moça pensou na menina, na mãe dizendo não a vida toda, naquele amor imenso que o bichinho lhe fez conhecer e entendeu que não se deve abandonar quem realmente se importa, quem faz a diferença. Nem que seja uma criatura pequena, de quatro patas, andar desajeitado e que só consiga lhe falar com os olhos.

Bicho-papão 15:31

Ela era criança normal, dizem. Aprontava travessuras, brincava com panelinhas de barro, costurava roupinhas de bonecas para suas espigas de milho, se banhava no açude, era feliz.
Tudo isso são coisas que os pais dos meus pais contaram, passaram às crianças que eles foram um dia e de lá, nos trouxeram a herança. Cada relato envolvendo a pobre moça _ que um dia ousou passar da conta nas malcriações com a mãe e teve como castigo a maldição de virar cabra nas noites de lua cheia _ vinha em três dimensões. Interjeições, falas cansadas do narrador temeroso, nos faziam tremer e querer nos aproximar dos anjinhos de candura pintados na capela do vilarejo distante.
Dizem que tudo começou quando ela se viu completamene rendida aos encantos de um jovem, recém-chegado, de férias dos seus estudos na capital. Filho do dono da única mercearia nas redondezas, onde de tudo se encontrava.
Moço rico, cheio de vontades estranhas, de modos esquisitos e que, diferente da maioria dos moleques que andavam pela vila, não usava bigode e ainda ostentava cavanhaque curtinho, enfeitando o queixo quadrado.
Num final de tarde, foi comprar o que faltava para a ceia _ costume dos mais velhos, que não iam dormir sem antes saborear um “quase banquete”, servido às oito da noite, regado a bom trago (para os homens) e chá de ervas (para as mulheres).
Paixão instantânea, fulminante. Era dele todo o amor que havia guardado. Não haveria outro.
O moço, completamente desinteressado, não se fez de rogado, porém. Aceitou a ingenuidade da jovem e, em troca, lhe deu enganos e desprezo. “Caiu na boca do povo, caiu na boca do povo”, foi a sentença em cada esquina.
Mãe viúva, desesperada, pôs a “perdida” de castigo, trancafiada em casa, e a proibiu de voltar a encontrar o enganador, que não tardou em escapolir da vila, com medo de ser obrigado a pagar pelo “mal feito”. Apaixonada, a filha desafiou a autoridade materna e levantou as mãos àquela que lhe dera à luz. O castigo veio a cavalo - ou melhor, em uma cabra, que lhe tomava o corpo nas noites em que a Terra encarava a lua.
Pior: a moça ganhava asas escuras _ tipo ave de rapina _ e rasgava o sereno da madrugada com seus gemidos altos, causando arrepios até nos mais incrédulos. Nunca mais amou, nunca mais pôde voltar, a “Cabra alada”. Perambulava na mata, viveu não se sabe como nem até quando. “Talvez pra sempre, na solidão dos ingratos”, refletiam os mais velhos.
Toda essa contação nos era repetida, sempre que alguém ousava desrespeitar os mais velhos ou tentar desafiar a autoridade dos pais. Funcionava que era uma beleza e ninguém precisava de lei impressa para que o respeito se estabelecesse. Tudo era feito na base da confiança, dos causos ingênuos, da cumplicidade e da partilha.
Palavra dos mais velhos era a própria lei. Bichos-papões iam embora quando a criança dava lugar ao adulto e as histórias de cabras aladas ficavam entre as boas lembranças dos tempos de meninos e meninas, criados com amor.

Uma paraíba no frio (3) 14:09


A coisa é complicada. Mesmo depois de cinco longos invernos, meu pobre e franzino corpo não está pronto para enfrentar a maratona do frio. Reclama, o bichinho, que dá dó. Não adiantam, porém, suas queixas, porque eu realmente não sei o que fazer para aplacar a fúria gelada que toma conta de tudo, invade as paredes, desafia os vidros das janelas, a montanha de cobertas jogadas sobre a criatura indefesa _ ali, parada, sem forças para se mover, deslocar qualquer ínfimo centímetro no colchão que lhe abriga noite adentro.
 

Achando que já tinha o controle sobre esse tal frio, até zombei de amigos catarinas, invernos passados. Não imaginava que aqueles eram invernos atípicos, camaradas, bonzinhos comigo. Fui completamente enganada pela estação, que deixa tudo bem bonito em volta, não posso negar, mas que tem me atormentado dia e noite. É sério, está bem difícil levar essa coisa...
 

Gosto de ver as pessoas nas ruas, encasacadas, com mãozinhas nos bolsos, cachecóis no pescoço, botas, gorros, luvas, exibindo o charme que só o inverno traz. Gosto também de me sentir meio borboleta nesses dias, me enclausurando em casa, me enchendo de sopas, massas, calorias, filmes, chocolates quentes, músicas gostosas tocando enquanto escrevo, enrolada na manta de lã, em paz.
 

Mas isso tudo é muito bom enquanto o frio é suportável, enquanto não chega a fase dos “ais” e “uis”, de dor mesmo, dor de tanto contrair os ombros, dor de colar uma perna sobre a outra _ em vã tentativa de aquecê-las _ nas mãos, na cabeça, na face.
Quando o frio chega nesse ponto, a diversão vai embora e peço a Deus que desligue o ar-condicionado, porque está perto de até o ar ficar sólido e todo mundo virar picolé.
Essa semana foi a mais fria de toda a minha vida _ e olha que já se vão quase quatro décadas de existência sobre a face da Terra. Durante o dia até que a coisa vai mais amena. À noite, no entanto, o bicho pega.
 

Primeira etapa: o banho. Terror no terceiro andar. Chuveiro ligado, prestes a queimar a resistência, banheiro fechado e o ritual desesperador, entre começo, meio e fim. Quilos de roupa, pulinhos para aquecer. Seca cabelo, seca, seca, seca. Alívio. Abre porta. Toca o terror parte dois. Mais pulinhos, breve corrida: quartos, sala, cozinha. Vamos ao jantar.
 

Comida quente, espumando de tanta caloria. Capricho nas massas, nos queijos, nata, bacon, pimenta. Vai de tudo um pouco. Jantar no sofá, enrolada na coberta, com prato quente sobre almofadas estrategicamente aprumadas no colo. Finda a refeição, hora de correr pra cama, ligar a TV e pedir a Deus que tudo comece a aquecer o mais breve possível.
 

Dica: faça como as cobras, se arraste lentamente, vá reconhecendo a área, para não ser pega pela parte que ainda está gelada. Desça sob a montanha das cobertas, enfie a touca na cabeça, deixe apenas o nariz de fora e espere o sono colaborar e lhe trazer a ausência dos sentidos temporária, que lhe manda para longe do mundo gelado por algumas horas. A paz, enfim. Até que o novo dia chegue e tudo recomece, enquanto o inverno durar.

Feriado Nacional 22:34


É caso de amor estranho, esse do brasileiro com a gorducha. Jogada de pé em pé, nos gramados, nos campinhos de várzea, tolerando todas as pancadas em nome da paixão dos que lhe chutam, maltratam, mas não saberiam viver sem ela. A coisa merecia ser estudada, tamanha a idolatria, com suor e lágrimas.
 

Pois o que dizer da peregrinação de uma amiga, bem no dia da eliminação do Brasil diante da Holanda em clínica da cidade (ela me garante que foram seus agouros, sua indignação e seu desejo de vingança que provocaram a partida antecipada dos atletas canarinhos)?
“Marquei com antecedência, criatura, fiz tudo direitinho. Ainda perguntei à moça que me atendeu se não teria problema marcar para a manhã desse bendito jogo, porque eu já não ando bem de saúde e não queria voltar para casa pior do que saí”, contou, indignada.
 

Ela saiu de casa às 8h30 (a consulta foi marcada para as 9h30), caminhando pelas ruas largas da Cidade Azul, já percebendo a atmosfera verde e amarela tomando conta de tudo. A euforia parecia se solidificar no ar, que ia ficando mais estranho a cada minuto _ com vuvuzelas estridentes soltando gritos fanhos em rápidas passagens de carros, enfeitados de bandeirinhas, com ocupantes praticamente pendurados nas janelas.
 

“Definitivamente, eu não gosto de futebol. Mas Copa é diferente, concordo, porque é o país sendo representado, são as cores da bandeira, tem a coisa do hino... O que não dá pra engolir é transformar o dia do jogo em feriado ou coisa pior. Tudo para!”, explodiu, visivelmente indignada.
 

Eu, calada, fui ouvindo o desabafo.
“Cheguei lá às 9h10, vinte minutos antes da consulta. Poucas pessoas ainda sentadas nas cadeiras de espera, pareciam não acreditar no que viam. Funcionários correndo de um lado ao outro, chamando os colegas às caronas. Falaram na cara dura que eu havia chegado tarde e que o expediente era até as dez, naquele dia especial. Mas que mané dia especial? E que dez horas da manhã, minha filha? Ainda nem são nove e meia!”, foi lembrando, furiosa, quase sem ar.
 

“Uma funcionária com cara de vó quase me bateu, porque eu estava querendo atrasar as pessoas pro jogo”, continuou. “Foi salva por parecer avó. Vencida, dobrei o papel, a esquina e desejei _ do fundo do meu coração _ que o Brasil perdesse a partida e fizesse todo mundo acordar do transe”, despejou, quase mordendo os lábios.
 

“Ontem guardei minha camisa, para 2014, com um belo sorriso nos lábios. Lembrei da atendente com cara de vó e torci para que ela me atenda na próxima consulta. Vou dar meu melhor bom dia, meu maior sorriso, e jogar o placar da Holanda na cara dela, saboreando cada palavra”.
 

Como dizia, caso de amor estranho esse. Mas amor que se preza tira o bom senso, deixa todo mundo meio tolo. Ao final da conversa, ela se despediu: “Vou indo. Não perco por nada esse jogo de hoje. Vou secar a Argentina pra ver Maradona voltar mais cedo pra casa”.

Olho vivo 01:17


Você sabe que mais cedo ou mais tarde ele virá. Desde muito cedo lhe ensinaram: ele vai chegar. E então, começa a tal espera. Várias vezes você pensa que a hora se fez, o momento mágico. Engano, quase acerto, erros grosseiros. Quedas, depois de escaladas extenuantes, lágrimas, sorrisos desconcertantes, mais lágrimas, centenas de negações, desistências. Finalmente, vem o tempo de amaldiçoar o estranho convidado que se recusa a chegar.
 

Ele vem, ele vem, sopra a voz lá dentro. Um dia, a profecia se cumpre e a vida faz um sentido danado. A mais simples lembrança vira o bilhete premiado, que abre as portas à certeza: é amor.
 

Dali por diante tudo é festa. Não há o menor espaço, a menor possibilidade para a dor. Não há tempo ruim ou coisa que se faça maior que aquela paz tremenda que se instala, de mala e cuia, dentro de quem se pega apaixonado.
 

Chegam, então, os dias de erguer a fortaleza em volta de si, para que nada possa tocar o convidado _ que a essa altura já se fez maior que você, se tornou seu dono, seu senhor, responsável pelos desejos, pelas escolhas, pelas renúncias.
Dois viram um, partilhando confidências, cama, estradas e o banquete que ninguém mais pode provar. É tempo de falar baixinho, gritando nas paredes do outro as palavras mais lindas, guardadas a vida toda para aquele ser de outro mundo, único exemplar em todo o universo capaz de lhe tornar feliz.
 

É tempo de mãos grudadas, incansáveis no trato com a pele do outro. Tempo de pedrinhas na janela, do mesmo copo, de tomar o leite com nata para fazer o parceiro (que detesta nata no leite) mais contente no café da manhã _ mal sabe ele que você passa mal só de pensar em nata nadando sobre o seu café.
 

Chegam as horas das descobertas, do pedalinho no lago, das caminhadas na praia, dos jantares à meia-luz, do cinema, da saudade arrasadora quando o outro sai de perto por instantes, para em seguida voltar, maior ainda do que antes em sua vida.
Chega a hora de querer levantar e dançar coladinhos, na sala de estar, sem motivo algum, e sem música alguma tocando no seu "três em um".
 

Vem o momento em que você respira fundo, olha o outro ali, ao seu lado, e agradece a Deus por ter encontrado aquilo que ninguém mais no mundo achou: aquele amor, o seu, o maior, invencível, para sempre.
 

Esse é o momento de você cair fora, companheiro. É a hora certa de retomar sua vida, sair à francesa. Porque o amor é traiçoeiro, lhe arranca de você, lhe dá o outro, lhe põe em transe e quando você pensa que o tem, ele mostra quem manda e vai lhe deixando sem que você perceba.
 

Ele vem, mas ele vai embora sem cerimônia e ainda lhe cobra a conta pela hospedagem. Leva de você a alegria, a certeza, a força, a fome, o sono, todas as vontades, todos os sonhos. Ele nasce, cresce e morre, num súbito ataque do coração (e isso não lhe ensinaram).  Faça de conta que acredita nele. Deixe-o pensar que lhe engana. Use e abuse desse enganador. Peça que ele vá à esquina comprar cigarros e suma, antes que ele possa voltar e desfazer de você.