Um dedo de prosa

Germana Telles

No meio do caminho 22:55

Meio-dia, sol de rachar e quatro meninos dispostos a desafiar as impossibilidades a qualquer custo. A missão era mais importante que os obstáculos e eles sabiam disso, apesar do pouco tempo no mundo.
Enquanto os mais velhos apressavam cada vez mais os passos, os menores iam mais lentos, aproveitando tudo que viam pelo caminho. E não era pouco. Tinha de tudo naquela estrada. Pedra grande, pedra pequena, flor rasteira, flor estranha, espinho, barro, resto de bicho e, de vez em quando, carroças, bodes e lagartos enormes.
Com perninhas de sabiá, a menorzinha fazia cantar as sandálias, tentando pegar o que de melhor havia entre aquilo tudo e acompanhar a pisada do irmão. O silêncio só era quebrado por alguns assovios do garoto, buscando imitar os pássaros ou chamar o cachorro, que vinha atrás, se perdia e os achava, cambaleando de cansaço. Valente, o bichinho não desistia também, embora desconhecesse o rumo da viagem e o porquê.
Eram cinco, na verdade. Porque aquele cachorro era mais esperto que muita gente, diziam. “Não fala para não ir à escola”, sempre lembrava o pai.
Nada levavam além da certeza de que era preciso seguir em frente, apesar da fome, do calor, da sede e das bolhas nos pés. Além das brotoejas, que brotavam às centenas, no pescoço, atrás das orelhas e nas costas. Aquilo coçava que era um inferno. Doía, coçava, ardia e alfinetava a pele, por baixo das roupas.
Eles não desistiam. Iriam até o fim. E assim foram, até que o mais velho avistou o que queriam. E pediu que os irmãos apressassem o passo. Correram e quase cortaram os pés, em meio aos pedregulhos.
Entraram pelo mato, em meio às urtigas, carrapateiras e ao desconhecido, atrás do maior. É ali, peguem tudo que puderem levar, nas mãos e nos bolsos.
Ágeis, foram catando os matinhos que o irmão mostrava e enchendo a roupa. Cheirava forte aquela erva. Cheiro bom, como se a terra deixasse ali sua seiva, sua essência. Dava vontade até de comer, pelo cheiro e pelo vazio na barriga. Mas não podiam desperdiçar. Quanto mais, melhor, lhes falaram em casa, antes da saída, quando os galos ainda cantavam e o sol era um tímido rasgo no céu.
Fizeram o caminho de volta bem mais animados e até ensaiaram um canto qualquer, aprendido nas inúmeras andanças, naquele mundo que era só deles.
Ao dobrarem a última curva, viram a mãe na soleira, com a mão sobre a testa, tentando busca-los à distância. O aceno rápido da mulher os fez correr ainda mais. Podia não dar tempo e tudo teria sido em vão.
Entregaram tudo e sacudiram cada pedaço de pano, para ver se tinham entregue todo o mato colhido. O chá foi feito, mas o caçula não resistiu e nem chegou a tomar do remédio trazido pelos irmãos. O cheiro da terra ficou no ar e não foi capaz de estancar as lágrimas dos pequenos, que sentiram a dor mais amarga de se provar nessa vida. A fome passou, os calos adormeceram e a noite chegou mais cedo, deixando para sempre o sol do meio-dia queimando a retina. Naquele momento, a esperança virou pó.

Inédito 04:37

Era de nome que falavam. Dos nomes das pessoas, dos bichos, das coisas, mas principalmente das pessoas. Ou melhor, do seu nome.
Ele não gostava da escolha, nem poderia, coitado. Danada de decisão do pai, que se abestalhou com uma palavra bonita e jogou no filho, como se fosse marca, para a vida toda.
A moça _ que mal havia chegado da cidade grande e tentava mudar as coisas em meio àquele sertão perdido _ lhe dizia para dar nome ao cachorro da família, que sempre atendia aos assovios, e só.
Ele precisa de um nome, precisa de um nome, dizia a moça. Quem precisava de nome novo era ele, pensava. Onde já se viu batizar o filho de “Inédito”? Alguém, além dele, daquele menino franzino, de andar meio torto, sozinho em meio à caatinga, brincando com um cachorro sem nome, seria Inédito? É claro que não, respondia (antes mesmo de dar chance a outra explicação enfadonha), desconcertado, enfurecido, enquanto chutava o barro do chão.
Acabou se contentando com o “Detinho”, que sua santa mãe providenciou para pôr no lugar do Inédito, que ela não sabia pronunciar. “É muita letra pra um nome só”, dizia entre sorrisos, quase sem dentes.
Pela vontade da mãe, ele seria João, Antônio, Pedro, José. Qualquer nome que coubesse no juízo de um cristão e na boca de quem chamasse. Menos Inédito.
A moça bem que tentava controlar o sorriso. Ria mais pela fúria declarada do menino do que da infelicidade de levar pela vida aquela pecha ou da ingenuidade do pai, que achou fazer um favor à criança com nome lindo daquele.
Pense que no mundo inteiro, só há você. Você foi o primeiro, tentava a moça. E até que aquilo fazia sentido, combinava com a estranheza toda.
Não adiantava. O menino não levantava os olhos. Só batia com força nas pedras, socava o barro vermelho e balançava a cabeça, em negação.
Moça, a senhora tem nome bonito, de princesa _ Maria Amália. Olhe só, que nome mais do lindo! Eu nem ligo mais para o meu, até esqueci dele. Só lembrei agora porque a senhora disse pra dar nome ao cachorro. Mas pra que cachorro precisa de nome? Ele responde no assovio e pronto. Precisa de nome não, declarava, como quem implanta uma lei, a sua lei, naquele lugar _ que mesmo pobre, perdido no meio do mundo, era seu.
O cachorro chegou junto, olhou a criança, cheirou suas mãos e abanou o rabo, pedindo brinquedo, folia, afeto. Sem nome, era mais feliz assim.
A moça desistiu de tentar convencer aquele menino, tão mais forte que ela e tão calejado pela vida. Foi lá dentro da casa, onde ergueria o seu mundo, pegou o instrumento e desandou a tocar.
Sem licença ou despedidas, o menino levantou, assoviou e correu pelo terreiro, com o cachorro sem nome.
Era verdade o que ele dizia. Para que complicar as coisas? Ele era o menino, que brincava com o cachorro, no sertão que era todo seu. Ninguém precisava mudar aquilo, porque daquele jeito tudo corria bem, do modo que eles sabiam, da forma que conheciam o que nunca foi dito, o nome que não se falava: a felicidade.

Inspiração 13:54

A força que morava naqueles olhos me deixava sem graça, mas me empurrava para a vida com a certeza de que eu poderia chegar mais perto de Deus, através dela.
Jamais conheci alguém tão grande, tão determinado, tão generoso e desprendido de ambições desmedidas quanto ela. Vivia e renascia todos os dias pelo amor que havia em si e que ela, sem medida, entregava a quem passasse por perto.
A formiguinha ligeira, incansável em sua labuta, acordando todos os dias antes do sol, era a corda que nos amarrava num círculo iluminado de segurança e fé. Sabíamos que com ela, estando ali, dividindo o lar e os dias com ela, seríamos felizes.
Não importavam os obstáculos, as tristezas que vez em quando batiam à nossa porta, as distâncias que precisamos vencer, tantas vezes, em busca de paz. Tudo com ela era bom. E tudo começava e terminava de maneira tão fácil de se levar, com uma simplicidade tão desconcertante, que nos comovia, ao vê-la agarrar a vida com tanta vontade.
Até nos dias piores, _diante da perda do filho, da doença, que lhe roubou o direito de andar, das saudades que ela acumulou em sua estrada _ ela não desdisse a sua fé, a sua força. Eu queria ter aprendido com ela. Era o que eu mais queria. Aquela capacidade de ser gente, de acreditar nas outras gentes que nem sempre mereciam o seu afeto e que sempre, sempre, tinham o seu abraço, o seu sorriso e o seu perdão.
Nem sei se aquilo que ela oferecia era mesmo perdão. Talvez fosse o esquecimento, a falta de registro do lado negativo de qualquer coisa, qualquer pessoa. Sei que queria ter aprendido com ela.
Sou pequena demais, no entanto, e perdi a oportunidade de fazer do meu caminho algo tão melhor. Eu devia ter seguido seus conselhos, ter anotado cada um deles, ter ido dormir na hora que ela falasse, ter respeitado mais o meu tempo, ter aprendido a tocar melhor o piano, ter largado o cigarro, ter prestado atenção aos caminhos que escolhi e que não estavam em seus planos.
Juro que eu não sabia que doeria tanto crescer e ter que tocar a vida sem aquela luz que jorrava em minha volta e me fazia tão feliz. Sei que se pudesse voltar atrás, jamais teria lhe dito um não, jamais teria me atrasado para os almoços de domingo (quando ela sempre estava pronta, sentada na rede, com seu melhor vestido, cabelos bem penteados, olhar ansioso, me esperando chegar).
Queria seus recados em meu celular, sempre dizendo antes quem era (“Minha filha, sou eu, sua mãe”) _ como se eu não soubesse, como se fosse preciso _ me deixando recomendações ou contando algo corriqueiro, que ela fazia especial e repartia conosco, extensões do seu corpo, da sua vida.
Busco, inquieta, outro olhar como aquele, outra voz como aquela, outra luz que me faça feliz como naqueles melhores dias da minha vida. Tenho a fé, que ela me deixou de herança, como guia. Vou, abrindo trilhas. Hei de achar a inspiração que me devolva a capacidade de atravessar a vida com um sorriso nos lábios, o coração leve e as mãos sempre prontas para acolher, sem esperar recompensa.

Por que? 11:58

É engraçado como a gente vai mudando os conceitos, à medida que o tempo passa. Temos fases, como a lua (como diria a Cecília), e tudo começa na idade do por que (?).


Acabo de constatar isso, conversando com amiga, que está na fase do “mais ou menos”, “sei lá” e “pode ser”. Fase chata, já adianto, para aqueles que certamente também deverão experimentá-la.

No por que, tudo é novidade. A gente está como brinquedo novo, que acabou de sair da caixa, olhando tudo em volta com olhos de descobridor. Por isso, não nos aguentamos em meio a tantos rostos desconhecidos, tantos lugares novos, tanto mistério. Desandamos a mandar por ques pra tudo quanto é lado, irritamos pais, tios e irmãos, mas vale a pena.

É por uma boa causa que vivemos as interrogações: para que possamos começar a experimentar a vida. Bom lembrar: nunca devemos nos esquivar dos por ques dos pequenos. Nada de dizer “porque sim”, “porque não”, “porque é assim e pronto”, quando surgirem aquelas perguntinhas básicas: “Mãe, por que a Terra gira e eu não fico tonto?” ou “Por que eu não posso pular da janela?” ou ainda “Por que aquela criança mora na rua e eu tenho um quarto só pra mim?”.

Os por ques sempre têm um porquê. Merecem ser respondidos, devem ser respondidos, com clareza e verdade, para que os pequenos tenham a visão certa das coisas, criem valores, abram seus olhos e seu coração para o mundo, para o outro, para o semelhante e o desigual.

Muitos desses por ques também servem para nos dar um belo “sacode”. É chato ter que olhar o óbvio em nossa frente, ver face a face nossos erros, nossas fraquezas, nossa falta de sensibilidade gritando à nossa frente, batendo em nosso estômago como um soco, após um “por que?” lançado por uma criança.

Adoro a fase do “por que?”, que já me chegou quatro vezes, através de quatro menininhas minhas e lindas. Mesmo quando fiquei muito irritada, tendo que controlar a metralhadora mandando por que, por que, por que, numa velocidade impressionante, e eu me vendo louca, tendo que buscar a resposta mais clara possível para o que não costumamos nos preocupar em explicar.

Mas a fase do “mais ou menos”, “sei lá” e “pode ser” é insuportável. Credo. Ou uma coisa é ou não é. Ou é boa ou é ruim. Ou é feia ou bonita. Ou é claro ou é escuro, frio ou quente, alegre ou triste. Não é mesmo?

Ou alguém quer ou não quer uma coisa. Ou vai ou não vai. Ou serve ou não. Sei lá o escambal. Sei lá...

Pior ainda é quando vem o “pode ser”, que na verdade quer dizer “não pode ser, não dá, não quero, mas vou te cozinhar mais um pouquinho”. Pode ser é o pior, mesmo.

Por isso, vou lançar mão da sabedoria infantil agora, sempre que me jogarem um mais ou menos, pode ser ou sei lá. Criatura terá como troco um belo “por que” e não vale mentir de volta, eu já conheço bem o truque.

Quem partiu já vem 11:17

“Quem partiu já vem, quem partiu já vem”. O aviso chegava, em meio às arvores do quintal, no muro que cercava a casa e pelas brechas das janelas, enchendo nosso ninho de esperança. Na verdade, tudo que aquele canto fino do pássaro nos dizia mesmo era que algo mudaria naquelas redondezas, no caso, para nós. Era isso, pelo menos, que falava a minha mãe, convicta das suas crenças.


Nós também passamos a acreditar que o bem-te-vi, dono daquele canto e fiel transmissor dos presságios, era profeta.

Aquilo mexia, e ainda mexe, com a gente. O dia parecia ser especial quando ele vinha. As tarefas ganhavam mais sentido, mais urgência. Qualquer coisa saindo um centímetro da normalidade ganhava tom de sinal. E mesmo que nunca uma coisa possa ter sido influência do passarinho, algo sempre acontecia, alguém de longe sempre dava sinal de vida, chegava carta, notícia qualquer de parente ou amigo, renovando as nossas crenças.

Tenho vivido dias de bem-te-vi na janela. Hoje acordei ouvindo um deles, no quintal do vizinho _ que faz reforma interminável em sua casa. Minha alma parece acompanhar a reforma e tomou susto grande com o “quem partiu já vem” ao amanhecer.

Passamos a vida inteira buscando construir sobre bases sólidas, achamos que encontramos o caminho, a rota certa, e investimos o melhor que há em nós nessa aposta, na certeza de que vamos deixar algo impresso _ uma história, uns dias, uns amigos, uns parentes, uns filhos, um trabalho, um livro, um conselho qualquer, um amor.

Cada passo, escolha, renúncia, dinheiro guardado, dinheiro gasto, estrada vencida, sonho plantado. Tudo passa a girar em torno dessa obra a que nos propomos ser autores e que se transforma no sentido de existirmos.

Acordar, levantar, comer, se mover, plantar, respirar. Tudo é agulha e linha na costura desse plano bem traçado, para que a vida seja feliz, plena, dentro do que estabelecemos como a meta principal de estarmos aqui.

Um dia, porém, a obra atrasa. Faltam tijolos, argamassa, concreto, telhas, fios, canos. Falta querência, vontade, sentido. E quando menos esperamos, tudo precisa ser interrompido, a obra fica inacabada e um bem-te-vi bate à janela com o seu “quem partiu já vem”.

Olhei o quintal do vizinho, ouvi o passarinho perambulando lá fora, respirei fundo e fiz as minhas orações da manhã, pedindo a Deus que seja bom presságio esse canto fino, em meio ao inverno rigoroso de agosto.

“Mesmo que a gente chore, maldiga, fique com muita raiva do destino, ele sempre é o dono da verdade. Ele sabe o que faz e o que é melhor para nós. Nunca pense que foi a última vez, que foi o último gole, o último pão. Tudo se repete nessa vida, não importa o cenário ou quem está em cena, para que possamos retomar o nosso caminho”, diria a minha mãe.

Não vou duvidar do que ela me faria acreditar. Ela sempre acertou em tudo. Até nos dias em que nos fazia levantar mais contentes, bendizendo a manhã que chegava com o canto de um bichinho minúsculo, avisando: “Quem partiu já vem, quem partiu já vem”.

O melhor presente 04:37

Desde criança ela quis muito ter o que seria o melhor presente do mundo. Pedia ao pai insistentemente. Fazia as propostas mais difíceis de serem cumpridas _ como ficar sem presente de Natal por toda a vida ou abrir mão do sorvete no fim de semana. Nada adiantava. Aquela casa não era lugar para cachorros.
Tinha raiva da vizinha, que ainda colocava mais lenha na fogueira: “Cachorro só faz sujeira, bagunça tudo, fica doente e ainda foge, deixando todo mundo maluco”.

O que a futriqueira não sabia é que cachorros pulavam alto, brincavam de tudo que se poderia imaginar, não se cansavam de querer agradar, eram amigos como poucos e ainda entendiam os recados silenciosos, se por acaso ela estivesse triste e apenas quisesse ficar quietinha, ali no canto, sem esboçar gesto algum.

Não importava, eles não queriam e pronto. Tantas tentativas em vão a fizeram esquecer o pedido. Um dia, porém, ela cresceu e a aquele sonho ficou possível. Um amigo, sabendo do seu desejo de menina, nem perguntou se caberia ou não cachorro naquela casa. Levou o bichinho, dentro de uma caixa de papelão.
Amor instantâneo, recíproco e arrebatador. “É menina”, disse o amigo. Pretinha, com uma mancha branca minúscula no peito, patas redondinhas e olhar de quem pede: “Me cuida”. Chorava e balançava o rabo, buscava refúgio entre as roupas da nova dona, que quase explodia de tanto querer bem.

Não houve quem não a quisesse. Conquistou todo mundo com aqueles olhos cor de ameixa e o rebolado desajeitado, enquanto tentava se equilibrar sobre as quatro patas. Os pais acabaram se apaixonando também e comprariam qualquer briga para mantê-la em casa. Fiel, acompanhava o pai, todas as noites, quando ele se recolhia, e dormia sobre os chinelos. Ninguém perturbaria o sono. Era a criança, a parceira, ensinando lealdade e afeto aos donos daquela casa.

Um dia a moça precisou ir morar muito longe. Sem despedidas, recomendou cuidados e disse que voltaria logo, para muitas tardes de caminhada à beira-mar e brincadeiras sem hora para acabar. Não pôde cumprir a promessa. Tuca não segurou a distância. Foi deixando de brincar, de atender aos chamados, de comer... e um dia não acordou mais. Morreu de saudade.

A moça pensou na menina, na mãe dizendo não a vida toda, naquele amor imenso que o bichinho lhe fez conhecer e entendeu que não se deve abandonar quem realmente se importa, quem faz a diferença. Nem que seja uma criatura pequena, de quatro patas, andar desajeitado e que só consiga lhe falar com os olhos.

Bicho-papão 15:31

Ela era criança normal, dizem. Aprontava travessuras, brincava com panelinhas de barro, costurava roupinhas de bonecas para suas espigas de milho, se banhava no açude, era feliz.
Tudo isso são coisas que os pais dos meus pais contaram, passaram às crianças que eles foram um dia e de lá, nos trouxeram a herança. Cada relato envolvendo a pobre moça _ que um dia ousou passar da conta nas malcriações com a mãe e teve como castigo a maldição de virar cabra nas noites de lua cheia _ vinha em três dimensões. Interjeições, falas cansadas do narrador temeroso, nos faziam tremer e querer nos aproximar dos anjinhos de candura pintados na capela do vilarejo distante.
Dizem que tudo começou quando ela se viu completamene rendida aos encantos de um jovem, recém-chegado, de férias dos seus estudos na capital. Filho do dono da única mercearia nas redondezas, onde de tudo se encontrava.
Moço rico, cheio de vontades estranhas, de modos esquisitos e que, diferente da maioria dos moleques que andavam pela vila, não usava bigode e ainda ostentava cavanhaque curtinho, enfeitando o queixo quadrado.
Num final de tarde, foi comprar o que faltava para a ceia _ costume dos mais velhos, que não iam dormir sem antes saborear um “quase banquete”, servido às oito da noite, regado a bom trago (para os homens) e chá de ervas (para as mulheres).
Paixão instantânea, fulminante. Era dele todo o amor que havia guardado. Não haveria outro.
O moço, completamente desinteressado, não se fez de rogado, porém. Aceitou a ingenuidade da jovem e, em troca, lhe deu enganos e desprezo. “Caiu na boca do povo, caiu na boca do povo”, foi a sentença em cada esquina.
Mãe viúva, desesperada, pôs a “perdida” de castigo, trancafiada em casa, e a proibiu de voltar a encontrar o enganador, que não tardou em escapolir da vila, com medo de ser obrigado a pagar pelo “mal feito”. Apaixonada, a filha desafiou a autoridade materna e levantou as mãos àquela que lhe dera à luz. O castigo veio a cavalo - ou melhor, em uma cabra, que lhe tomava o corpo nas noites em que a Terra encarava a lua.
Pior: a moça ganhava asas escuras _ tipo ave de rapina _ e rasgava o sereno da madrugada com seus gemidos altos, causando arrepios até nos mais incrédulos. Nunca mais amou, nunca mais pôde voltar, a “Cabra alada”. Perambulava na mata, viveu não se sabe como nem até quando. “Talvez pra sempre, na solidão dos ingratos”, refletiam os mais velhos.
Toda essa contação nos era repetida, sempre que alguém ousava desrespeitar os mais velhos ou tentar desafiar a autoridade dos pais. Funcionava que era uma beleza e ninguém precisava de lei impressa para que o respeito se estabelecesse. Tudo era feito na base da confiança, dos causos ingênuos, da cumplicidade e da partilha.
Palavra dos mais velhos era a própria lei. Bichos-papões iam embora quando a criança dava lugar ao adulto e as histórias de cabras aladas ficavam entre as boas lembranças dos tempos de meninos e meninas, criados com amor.

Uma paraíba no frio (3) 14:09


A coisa é complicada. Mesmo depois de cinco longos invernos, meu pobre e franzino corpo não está pronto para enfrentar a maratona do frio. Reclama, o bichinho, que dá dó. Não adiantam, porém, suas queixas, porque eu realmente não sei o que fazer para aplacar a fúria gelada que toma conta de tudo, invade as paredes, desafia os vidros das janelas, a montanha de cobertas jogadas sobre a criatura indefesa _ ali, parada, sem forças para se mover, deslocar qualquer ínfimo centímetro no colchão que lhe abriga noite adentro.
 

Achando que já tinha o controle sobre esse tal frio, até zombei de amigos catarinas, invernos passados. Não imaginava que aqueles eram invernos atípicos, camaradas, bonzinhos comigo. Fui completamente enganada pela estação, que deixa tudo bem bonito em volta, não posso negar, mas que tem me atormentado dia e noite. É sério, está bem difícil levar essa coisa...
 

Gosto de ver as pessoas nas ruas, encasacadas, com mãozinhas nos bolsos, cachecóis no pescoço, botas, gorros, luvas, exibindo o charme que só o inverno traz. Gosto também de me sentir meio borboleta nesses dias, me enclausurando em casa, me enchendo de sopas, massas, calorias, filmes, chocolates quentes, músicas gostosas tocando enquanto escrevo, enrolada na manta de lã, em paz.
 

Mas isso tudo é muito bom enquanto o frio é suportável, enquanto não chega a fase dos “ais” e “uis”, de dor mesmo, dor de tanto contrair os ombros, dor de colar uma perna sobre a outra _ em vã tentativa de aquecê-las _ nas mãos, na cabeça, na face.
Quando o frio chega nesse ponto, a diversão vai embora e peço a Deus que desligue o ar-condicionado, porque está perto de até o ar ficar sólido e todo mundo virar picolé.
Essa semana foi a mais fria de toda a minha vida _ e olha que já se vão quase quatro décadas de existência sobre a face da Terra. Durante o dia até que a coisa vai mais amena. À noite, no entanto, o bicho pega.
 

Primeira etapa: o banho. Terror no terceiro andar. Chuveiro ligado, prestes a queimar a resistência, banheiro fechado e o ritual desesperador, entre começo, meio e fim. Quilos de roupa, pulinhos para aquecer. Seca cabelo, seca, seca, seca. Alívio. Abre porta. Toca o terror parte dois. Mais pulinhos, breve corrida: quartos, sala, cozinha. Vamos ao jantar.
 

Comida quente, espumando de tanta caloria. Capricho nas massas, nos queijos, nata, bacon, pimenta. Vai de tudo um pouco. Jantar no sofá, enrolada na coberta, com prato quente sobre almofadas estrategicamente aprumadas no colo. Finda a refeição, hora de correr pra cama, ligar a TV e pedir a Deus que tudo comece a aquecer o mais breve possível.
 

Dica: faça como as cobras, se arraste lentamente, vá reconhecendo a área, para não ser pega pela parte que ainda está gelada. Desça sob a montanha das cobertas, enfie a touca na cabeça, deixe apenas o nariz de fora e espere o sono colaborar e lhe trazer a ausência dos sentidos temporária, que lhe manda para longe do mundo gelado por algumas horas. A paz, enfim. Até que o novo dia chegue e tudo recomece, enquanto o inverno durar.

Feriado Nacional 22:34


É caso de amor estranho, esse do brasileiro com a gorducha. Jogada de pé em pé, nos gramados, nos campinhos de várzea, tolerando todas as pancadas em nome da paixão dos que lhe chutam, maltratam, mas não saberiam viver sem ela. A coisa merecia ser estudada, tamanha a idolatria, com suor e lágrimas.
 

Pois o que dizer da peregrinação de uma amiga, bem no dia da eliminação do Brasil diante da Holanda em clínica da cidade (ela me garante que foram seus agouros, sua indignação e seu desejo de vingança que provocaram a partida antecipada dos atletas canarinhos)?
“Marquei com antecedência, criatura, fiz tudo direitinho. Ainda perguntei à moça que me atendeu se não teria problema marcar para a manhã desse bendito jogo, porque eu já não ando bem de saúde e não queria voltar para casa pior do que saí”, contou, indignada.
 

Ela saiu de casa às 8h30 (a consulta foi marcada para as 9h30), caminhando pelas ruas largas da Cidade Azul, já percebendo a atmosfera verde e amarela tomando conta de tudo. A euforia parecia se solidificar no ar, que ia ficando mais estranho a cada minuto _ com vuvuzelas estridentes soltando gritos fanhos em rápidas passagens de carros, enfeitados de bandeirinhas, com ocupantes praticamente pendurados nas janelas.
 

“Definitivamente, eu não gosto de futebol. Mas Copa é diferente, concordo, porque é o país sendo representado, são as cores da bandeira, tem a coisa do hino... O que não dá pra engolir é transformar o dia do jogo em feriado ou coisa pior. Tudo para!”, explodiu, visivelmente indignada.
 

Eu, calada, fui ouvindo o desabafo.
“Cheguei lá às 9h10, vinte minutos antes da consulta. Poucas pessoas ainda sentadas nas cadeiras de espera, pareciam não acreditar no que viam. Funcionários correndo de um lado ao outro, chamando os colegas às caronas. Falaram na cara dura que eu havia chegado tarde e que o expediente era até as dez, naquele dia especial. Mas que mané dia especial? E que dez horas da manhã, minha filha? Ainda nem são nove e meia!”, foi lembrando, furiosa, quase sem ar.
 

“Uma funcionária com cara de vó quase me bateu, porque eu estava querendo atrasar as pessoas pro jogo”, continuou. “Foi salva por parecer avó. Vencida, dobrei o papel, a esquina e desejei _ do fundo do meu coração _ que o Brasil perdesse a partida e fizesse todo mundo acordar do transe”, despejou, quase mordendo os lábios.
 

“Ontem guardei minha camisa, para 2014, com um belo sorriso nos lábios. Lembrei da atendente com cara de vó e torci para que ela me atenda na próxima consulta. Vou dar meu melhor bom dia, meu maior sorriso, e jogar o placar da Holanda na cara dela, saboreando cada palavra”.
 

Como dizia, caso de amor estranho esse. Mas amor que se preza tira o bom senso, deixa todo mundo meio tolo. Ao final da conversa, ela se despediu: “Vou indo. Não perco por nada esse jogo de hoje. Vou secar a Argentina pra ver Maradona voltar mais cedo pra casa”.

Olho vivo 01:17


Você sabe que mais cedo ou mais tarde ele virá. Desde muito cedo lhe ensinaram: ele vai chegar. E então, começa a tal espera. Várias vezes você pensa que a hora se fez, o momento mágico. Engano, quase acerto, erros grosseiros. Quedas, depois de escaladas extenuantes, lágrimas, sorrisos desconcertantes, mais lágrimas, centenas de negações, desistências. Finalmente, vem o tempo de amaldiçoar o estranho convidado que se recusa a chegar.
 

Ele vem, ele vem, sopra a voz lá dentro. Um dia, a profecia se cumpre e a vida faz um sentido danado. A mais simples lembrança vira o bilhete premiado, que abre as portas à certeza: é amor.
 

Dali por diante tudo é festa. Não há o menor espaço, a menor possibilidade para a dor. Não há tempo ruim ou coisa que se faça maior que aquela paz tremenda que se instala, de mala e cuia, dentro de quem se pega apaixonado.
 

Chegam, então, os dias de erguer a fortaleza em volta de si, para que nada possa tocar o convidado _ que a essa altura já se fez maior que você, se tornou seu dono, seu senhor, responsável pelos desejos, pelas escolhas, pelas renúncias.
Dois viram um, partilhando confidências, cama, estradas e o banquete que ninguém mais pode provar. É tempo de falar baixinho, gritando nas paredes do outro as palavras mais lindas, guardadas a vida toda para aquele ser de outro mundo, único exemplar em todo o universo capaz de lhe tornar feliz.
 

É tempo de mãos grudadas, incansáveis no trato com a pele do outro. Tempo de pedrinhas na janela, do mesmo copo, de tomar o leite com nata para fazer o parceiro (que detesta nata no leite) mais contente no café da manhã _ mal sabe ele que você passa mal só de pensar em nata nadando sobre o seu café.
 

Chegam as horas das descobertas, do pedalinho no lago, das caminhadas na praia, dos jantares à meia-luz, do cinema, da saudade arrasadora quando o outro sai de perto por instantes, para em seguida voltar, maior ainda do que antes em sua vida.
Chega a hora de querer levantar e dançar coladinhos, na sala de estar, sem motivo algum, e sem música alguma tocando no seu "três em um".
 

Vem o momento em que você respira fundo, olha o outro ali, ao seu lado, e agradece a Deus por ter encontrado aquilo que ninguém mais no mundo achou: aquele amor, o seu, o maior, invencível, para sempre.
 

Esse é o momento de você cair fora, companheiro. É a hora certa de retomar sua vida, sair à francesa. Porque o amor é traiçoeiro, lhe arranca de você, lhe dá o outro, lhe põe em transe e quando você pensa que o tem, ele mostra quem manda e vai lhe deixando sem que você perceba.
 

Ele vem, mas ele vai embora sem cerimônia e ainda lhe cobra a conta pela hospedagem. Leva de você a alegria, a certeza, a força, a fome, o sono, todas as vontades, todos os sonhos. Ele nasce, cresce e morre, num súbito ataque do coração (e isso não lhe ensinaram).  Faça de conta que acredita nele. Deixe-o pensar que lhe engana. Use e abuse desse enganador. Peça que ele vá à esquina comprar cigarros e suma, antes que ele possa voltar e desfazer de você.

Ela e o mar 11:23

Jamais havia visto algo igual. Entre o sertão e a nova cidade que lhe acolhia, tudo era novidade. Até mesmo as pedras do caminho, a poeira escura, quase molhada, as nuvens _ tão baixas que a impressão que tinha era de ter alcançado as alturas (ou teria o céu descido à terra?).
Os pássaros voavam bem perto do velho caminhão, que levava a família inteira, agregados, mobília, lembranças e os animais, que reclamavam de sede, calor e do sacolejo constante dos pneus carecas na estrada esburacada.
A esperança de que um dia voltariam os mantinha vivos e com forças para suportar a distância, as ausências de quereres e o enfrentamento com os novos costumes, que não lhes dariam arrego: ceder ou desistir e voltar atrás.
Mas voltar para onde? _ pensava a menina, prestes a completar treze anos, ainda amante das bonecas de pano, dos banhos de chuva (quando havia a chuva) em meio à euforia nas ruas, dos doces feitos com água e açúcar, no velho tacho da mãe, incansável madeira, dura de envergar.
Maria só pensava em uma coisa. Martelava, alimentava, acalentava somente aquele sopro bom que lhe haviam dado antes da partida: ela certamente veria o mar. Teria o mar todinho pra si, sem ter medo algum de que um dia ele pudesse ter fim.
“O mar não seca. Finge que vai embora e volta, o tinhoso”, contou Jandira, prima de sua mãe, antes do último dia em casa. E foi falando, quase como quem dizia uma reza, contava segredo, pra que o mundo não soubesse que ela sabia. Mas ela sabia. E foi dizendo: “O mar brinca com os pés da gente, fica manso, fica brabo, fica manso fica brabo... É como se fosse o céu, só que mexe o tempo inteiro e tira a areia debaixo dos pés da gente”.
A menina ia se embalando, pensando no balanço que as palavras tinham e pôde sentir aquilo que lhe diziam ser o mar.
“Tem mar que parece gente. Canta, fala baixinho, sopra coisa boa, sopra coisa ruim. Tem mar que bufa feito a serra, quando cachimba no fim da tarde. Tem mar que só fica ali, quieto, sem se mexer, pronto pra dar o bote. É preciso ter cuidado com o mar. Porque ele às vezes enfeitiça e puxa a gente pra dentro dele. E o mar, o mar não tem cabelo onde a gente possa se agarrar”, contou Jandira.
Aquela romaria lhe veio à mente, como se aliviasse o cansaço da viagem. Até que, de repente o motor ficou calado. Alguém lhe tirou do sono leve e mostrou a casa nova. O mar ainda não estava ali. O encontro ficou para anos mais tarde, quando já tinha marido, filhos e netos. Muitos netos _ nascidos e crescidos de cara para o mar.
Naquela tarde, quase meio século depois da despedida, do adeus a Jandira e ao sertão, ela não esquecia os conselhos e a reza doce que falava do mar. Seu coração sertanejo avisava às crianças, que traziam seus traços e repetiam seus gestos, sorriam, quando ela repetia sem parar: “Voltem! Voltem! O mar não tem cabelo!”.

A fábrica 11:17

Sabíamos que aquele lugar deveria guardar muitos mistérios. Isso já nos bastava para sentirmos desejo enorme de vencermos a montanha que não parava de crescer e gerar filhotes, dentro dos muros de tijolos à vista, escurecidos pela fuligem e pelo tapete de musgos.
 
Não tínhamos a menor ideia de como nem quando fazer, mas faríamos, mais cedo ou mais tarde. Encasquetamos com aquilo e estudávamos secretamente as possibilidades de driblarmos o vigia, os funcionários e o gerente _ que era nosso vizinho e sempre parecia enfurecido, pronto para nos manter distantes, com um belo pontapé no traseiro.
 
Era melhor não arriscar enquanto as máquinas funcionavam, pensava, já que eles estariam circulando pelos corredores e nos teriam como presas fáceis, a um palmo das garras afiadas. Fui convencida do contrário pelo resto do grupo: o barulho das máquinas estaria a nosso favor. Poderíamos pular o muro sem nos fazer notar e mesmo que desmontássemos o mundo, eles não ouviriam.
 
Meu sonho era deitar e rolar naquela montanha de fibras _ extraídas dos cocos secos, maior riqueza da cidade. Dali, as fibras eram jogadas nas máquinas, limpas e depois transformadas em cordas, enviadas aos mais longínquos recantos. Antes disso, bem que poderiam nos servir de brinquedo.
No final de uma tarde morna, quando o sol tentava a todo custo vencer o nublado de julho, corremos feito loucos atrás de tanajuras, entrando e saindo de quintais, pulando poças, rodeando a fábrica.
 
A tentação nos venceu e começamos a escalada. Largamos as latas (carregadas de formigas cortadeiras), aproveitamos as brechas no muro e caímos no monte de fibras. Subimos e descemos tantas vezes que perdemos a conta. Pulamos, cavamos cavernas, escorregamos e voltamos a subir. Até ouvirmos o grito rouco, lá de dentro: “Traz água! Tem fogo nas máquinas!”.
 
Por um instante pensamos em pular e correr para longe. Mas nos detivemos no desespero dos homens, que pareciam loucos, tentando conter as chamas.
Pegamos nossos latões, nos livramos das tanajuras e viramos formiguinhas _ juntando água do poço e agilizando o trabalho dos funcionários.
Vizinhos foram chegando de todos os lados, apressados em não deixar o fogo chegar ao telhado e se espalhar até as fibras.
 
Não entendíamos totalmente a extensão do problema, mas sabíamos que não podíamos parar de pegar água.
A noite chegou com muita fumaça, cheiro de querosene no ar, mulheres, homens e meninos esgotados. No entanto, aquele dia tinha sido nosso. Éramos, enfim, bem-vindos à fábrica de cordas, já que havíamos ajudado a salvá-la.
 
Foram muitas as tardes em que voltei lá, até que aquela montanha foi me parecendo cada vez menor.
A fábrica ainda existe, no mesmo lugar, produzindo cordas fortes, trançadas pelas mãos calejadas de velhos conhecidos, que um dia foram meninos sonhadores e brincaram comigo de explorar quintais.

Tarde demais 13:17

Ela disse que não sei mais sonhar. Ela e sua mania de teimar em dizer o que pensa, mesmo quando o que pensa nada tem a ver com a verdade. A minha verdade, pelo menos.
Ela me disse que já me viu melhor, que eu já tive mais viço, mais alma, mais paixão e mais vontade. Cobrou-me desejos dos vinte anos quando já beiro os quarenta. Cobrou-me a luz que me emprestou e esqueci de multiplicar, dividir e devolver.
Ela disse que nada mais em mim se parece comigo, que nada mais resta de bom, de tudo que já conheceu e lhe fez ter querência, afeto, admiração. Ela me disse. Disse tanto e com tamanha força que me despedaçou feio. Baqueei, tremi, suei frio e quente. Deixei-me levar por tristeza tão imensa que quase acreditei em tudo que ela disse. E com a mesma força.
Perdi o sono, a fome, a vontade. Perdi a fé, a esperança e tive medo, muito medo de ter morrido antes mesmo de viver tudo que eu pensei ter vivido. Tive medo de ter sonhado com tudo que achei tão meu, tão concreto, tão bonito e tão único. Tive medo de realmente não ser mais aquela menina. A que tudo enfrentava sem qualquer receio de não conseguir, a que buscava água na terra mais árida (e encontrava sempre), a que apostava, arriscava, com coragem e persistência.
Ela disse que era tarde demais para mim. E disse que não havia mais nada a ser feito por mim, comigo, para mim. Que os caminhos, todos, estavam fechados, apagados à minha frente. Que a luz no fim do túnel não existia, que os meus dias eram findos e minhas preces certamente não seriam mais ouvidas por Deus. E me falou em caridade... em caridade.
Ouvi tudo com amargo terrível nos lábios. Minhas lágrimas deixaram sulcos em meu rosto, marcaram a ferro a minha alma. Por onde passaram, arderam como brasa. Meu grito ficou contido na garganta, latejando, doendo, batendo forte _ como se o coração realmente pudesse me saltar à boca. Coração que eu já nem deveria ter, segundo ela. Já que tudo estava perdido em mim.
Mal sabia ela que havia um espelho em meu quarto, quando cheguei em casa. E que ele me salvou a vida.
Ainda havia em mim dois olhos. Dois olhos castanhos e lembranças. Lembranças coloridas. Havia também a música, que ouvi baixinho. Havia um pai, uma mãe e três irmãos em mim. Também encontrei lá quatro crianças lindas, que me sopraram a face, com uma ternura tão imensa que me fez sentir o beijo de Deus na primeira criatura.
Ainda havia em mim a coragem de chorar. Chorar tudo, recobrando a força, a vontade, o desejo, a fé. Quebrei meu silêncio, o jejum e todas as correntes que me travavam os pés.
Não, não é tarde. Não tenho mais vinte anos, não tenho mais a inocência, não tenho mais o vigor de antes. Tenho, no entanto, dignidade, herança boa. Tenho valentia de sangue sertanejo, tenho saudade, tenho lembranças e muita estrada atrás e à minha frente, sim.
Bendito espelho que me fez enxergar quem sou. Bendito amor que me tenho, que me fez e que me leva a querer continuar vivendo e apostando em mim.

Meninos pagãos 13:20


Histórias que a gente ouve na infância ficam. Não tem jeito. Principalmente se o narrador é dos bons, daqueles que inventam vozes, recheiam as falas com sonoplastia digna dos melhores filmes de suspense e gesticulam como se vivessem a cena.
Eu tive bons narradores, dos melhores mesmo, nos primeiros anos da minha vida. E eles sabiam que eram, mesmo não tendo plena consciência das técnicas usadas. Caprichavam, rebuscavam efeitos e nos impressionavam de verdade. Deles ficaram também as lendas, os cuidados, os medos.
Pois bem, sei que se quebrar o espelho do meu quarto não terei sete anos de azar. No entanto, torço para que não aconteça. Sei também que se tomar banho depois do almoço não vou entortar sem conserto, mas... Se fizer careta e o galo cantar, se passar embaixo de uma escada, se comer manga e tomar leite, se comer melancia depois das seis da tarde, se cruzar uma encruzilhada...
Tudo isso é coisa besta, história pra boi dormir, mas eu não vou teimar com quem já viveu mais do que eu. Não mesmo.
Então, uma das histórias que mais me meteram medo e que até hoje me rouba o sono só de lembrar é a dos meninos pagãos. Reza a lenda, lá nos confins de São José da Coroa Grande, que se uma criança morre pagã jamais deixa de assombrar a casa, até que se faça um batismo simbólico e a torne cristã.
Perto da minha casa havia enorme castanholeira, onde os meninos pagãos vinham chorar sempre que morria mais um na cidade. Sob essa árvore eram realizados os batismos.
A estranha cerimônia era bonita de se ver. Mulheres vestiam branco, misturavam candomblé com orações cristãs, dançavam, se banhavam com sal e flores e ofereciam suas preces pelos anjinhos.
Chegávamos a ouvir o choro _ que na verdade era uma cuíca qualquer tocada entre os atabaques e os gemidos das mulheres _ e todos os fios de cabelos se arrepiavam.
Não sei onde foram parar os meninos pagãos, que hoje não choram mais, já que a árvore foi cortada para dar lugar ao asfalto. Não sei onde estão aquelas mulheres, seus atabaques, orações e cuícas.
Sei apenas que as histórias, os costumes e força daquela gente ficaram em mim. Para sempre.

O jubilado 16:02

O cheiro do café enchia o ar de bom dia. Aos poucos a cidade amanheceu. Fartura de expectativas e paz. O ruído no portão foi se transformando em algazarra quando elas entraram esbaforidas, aceleradas, falando ao mesmo tempo. Novidades à vista, pensamos.
Na cozinha o fuzuê estava armado. Minha mãe tentava acalmar as falastronas, que zumbiam, gesticulavam, despejando nomes conhecidos, entre goles fartos de café e enormes pedaços de bolo. "Jubilado, o menino, comadre! Jubilado", anunciava Sônia. "Dizem que a festa vai ser grande dessa vez. Já mandaram benzer a capela nova, tem banda de música ensaiando no salão paroquial e dizem que vem gente de tudo o que é canto para as homenagens", soltou Luzia.
Nos entreolhamos - eu e meus irmãos - e tentamos entender o porquê de tanta confusão. Afinal, quem era o jubilado, santo Deus? E por que festa para uma coisa assim? "O menino fez bonito", refletiam, reticentes. Batata! Elas não sabiam que o "feito" do menino era na verdade uma tragédia. Nos divertimos com aquilo, já no primeiro instante em que entendemos o engano. Dona Nadir atravessou o caminho entre o terraço e a cozinha feito um raio. O pano de prato gasto, amarelado, jogado nos ombros, indicava a sofreguidão dos curiosos. Lenço retocado de minuto em minuto. Corpo estourando em bolhas. Era conhecida a alergia da bodegueira, madrinha de todos os bêbados do vilarejo. O balcão de Dona Nadir era ponto de encontro de todos eles, dia e noite. Tudo que acontecia nos arredores chegava primeiro por lá. Era a imprensa local, aquele balcão tosco.
Dessa vez ela soube com atraso e a urticária deu sinal de vida. "Mas já avisaram ao prefeito?". Sim, sim, o prefeito já havia sido avisado, as diretoras dos grupos escolares, as benzedeiras, cozinheiras, fazendeiros, todo mundo sabia do grande triunfo de Vandelson na Capital. Jubilado. Minha mãe tentava falar, mas não conseguia. "Não tem que fazer festa, gente. O menino foi jubilado", tentou. Os olhares praticamente a fuzilaram. Podíamos quase ouvir os pensamentos das futriqueiras. "Ela está é com inveja porque não foi filho dela". Saíram em cortejo silencioso, dizendo voltar mais tarde.
Corremos pra calçada. Sentada no muro de casa, vi passar meninos de pernas finas empurrando carros-de-mão com gelo e pó-de-serra, cabritos com pés amarrados (prontos para o abate)e engradados de cerveja. Todo mundo queria dar sua contribuição para o herói da cidade. À noite a festa foi inesquecível. Discursos, foguetório, forró, comida e bebida até não se querer mais. No palanque, Vandelson tremia - mudava de cor, sorria amarelo, nos olhava sem jeito. Ele sabia que nós sabíamos. A diversão foi maior do que pensávamos. Jubilado.
Jamais vou esquecer o dia seguinte. Faixas no chão, restos de festa. Na parada do ônibus, antes de ir para a escola, encontrei o homenageado, triste, com mochila do lado. Depois da festa, foi forçado a não iludir mais os pais. Expulso de casa. Vergonha.
Durou pouco tempo a mágoa. O jubilado hoje é respeitado pai de família, longe da cidadezinha que lhe fez herói. A história nunca foi esquecida por lá. Dizem que pensaram até em erguer estátua. Sorte que alguém achou um dicionário a tempo. O dono de todas as pompas e glórias acabou virando a piada do século.

A companheira 15:53

Era a minha apresentação no teatrinho da escola. Estávamos vestidos com as túnicas azuis (horrorosas, por sinal) da cor do céu, com uma corda grossa amarrada à cintura, imitando os apóstolos, em pleno altar da capela do colégio. Minha única fala era anunciar que o Salvador havia nascido, e só. O resto era acompanhar as falas em que todos faziam aclamações. Tudo muito fácil, não tivesse a personagem principal apenas seis anos de idade.
Aquela minha estreia poderia ter sido apenas mais um trabalho de escola, mas foi bem mais, porque naquele dia descobri que havia alguém do meu lado, sempre, com uma força descomunal me empurrando para tudo que era bom nessa vida.
Assim que me lancei à frente e soltei a fala, a vi chegar. Trazia uma sacola de feira pendurada num dos braços e o rosto corado. Não sei se de emoção ou pelo sol de quarenta graus lá fora. Não sei mesmo se o sol estava lá fora ou se ela era, inteira, o próprio sol.
Fomos cúmplices, eu e ela, a vida inteira. Dela eu herdei os altos e baixos. Em alguns momentos sou um mar de águas calmas e bastam alguns segundos para me transformar num rio pronto para despencar corredeira abaixo. Herdei também o horror pelas injustiças, pela deslealdade, pelo egoísmo, pela ganância. Levo comigo o apego à família, às raízes, a vontade de festa em cada coisa do dia. Levo comigo a fúria destemperada ao ver um amigo ou irmão sendo desmerecido ou pisado. Levo comigo as canções de ninar, o colo macio, o abraço silencioso, as histórias antes de dormir.
Levo comigo as broncas, o leite quente nas noites com febre, o sorriso iluminado, as danças em nossa sala, o amor maior.
Já quis muitas coisas nessa vida, entre os seis e os trinta e seis anos de estrada. Já quis cantar, ela me deu violão e voz. Quis ganhar o mundo, ela me abriu as estradas, me entregando a todos os anjos e santos quando partia. Quis voltar para casa, ela me acolheu sem porquês nem senões. Já quis muito, sonhei alto. Mas nada me fazia mais contente do que chegar em casa e encontrá-la. Do que ter a quem pedir a bênção, do que saber que em algum lugar eu tinha um pedaço de mundo que me acolheria. Eu tinha para onde voltar.
Hoje, trocaria todos os anos da minha vida _ os que já tive e os que, porventura, terei. Trocaria todas as festas, todos os encontros, todas as estradas, tudo que fiz, pelo direito de tê-la de volta. Sei que ainda há muito a buscar, que não há por que parar quando o caminho ainda aponta para muito longe além do que os olhos alcançam. Mas ela fazia a diferença.
Ontem troquei ideias com alguém bem próximo e vimos que pensamos igual. Não há coisa melhor no mundo que mãe. Sem ela, parece que todo o nosso corpo deu um nó. Os pés travam, a voz falta, a infância volta a bater na porta e todos os bichos-papões saem de suas tocas.
Não há um dia em que eu não pense em nossa amizade. Mesmo que eu viva até esquecer de mim, mesmo que eu consiga tudo que eu pensei, não a esquecerei, nem por um segundo sequer.

Sobre a doçura da vida 15:44

Voltávamos da escola, sempre falantes, mais juntos do que em qualquer outro momento _ afinal, aquele era o nosso instante, quando éramos só nós dois, dividindo as primeiras horas dos nossos dias.
Os mais velhos seguiam à frente, porque andar de mãos dadas com o pai era coisa para quem ainda levava lancheira e usava uniforme infantil demais. Eu adorava ser a caçula e ter o privilégio que eles desperdiçavam. Tolos, que não aproveitavam os conselhos, que não desfrutavam dos sorrisos silenciosos (fazendo o corpo dançar, como se a alma se divertisse e mandasse lhe acompanhar na festa).
Quando as minhas frases soltas jogavam mais ingenuidade do que o costume, então eram gargalhadas fortes que enchiam o ar. Eles, os mais velhos, fingiam não se importar, mas então eu gargalhava junto, balançava o corpo junto, provocava com a nossa farra.
Num daqueles dias, porém, abusei da paciência do meu velho, quase ganho umas palmadas, mas entendi o significado da doçura, primã-irmã do amor de pai. Passamos por uma vitrine tentadora, loja nova no caminho, com filhotes de cães pulando para todos os lados. Latidos finos, patas minúsculas e arredondadas, pelos fofinhos, olhos espertos pedindo colo. “Quero um, compra?”, o pedido. “Não”, a sentença curta e definitiva. “Quero um, quero um, quero um” foi a ladainha pelo longo trajeto, uma quadra após a outra. Atrasei os passos, empaquei, ameacei greve de silêncio, reclamei da vida. E ele, firme. Até que _ com aquela compaixão que só os pais sentem frente ao choro de um filho _ ele sugeriu: “Que tal um pão doce?”.
Amuei e foi difícil desfazer a tromba. Onde já se viu oferecer um pão doce em troca daquele cachorrinho perfeito? Havia perdido a batalha. Fui rendida e cedi aos encantos dos pães cheios de coco açucarado. Ele parou no balcão, pediu os pães e ficou ali, pacientemente, esperando que desfrutássemos do lanche em horário indevido e que certamente lhe renderia reclamações em casa.
Entre uma mordida e outra, seus olhos me acertaram. Toda a malcriação já havia sumido, da minha parte. Todo o amor do mundo permanecia com ele, feliz diante das crias. Terminado o lanche, seguimos adiante, de volta para casa. Colamos novamente nossas mãos e retomamos os sorrisos de onde paramos.
Entre tantas outras coisas boas que meu pai me deixou, a doçura dos seus gestos é meta que tento alcançar diariamente. Mas, confesso: estou longe de chegar aos pés de tamanha grandeza.

Apaguem as luzes 15:40

Chegando do trabalho, durante a semana, fui surpreendida com o apartamento das minhas vizinhas às escuras. Somos sempre levados a buscar respeitar os que dividem conosco o mesmo espaço no condomínio, mas isso fica complicado quando os apartamentos são praticamente colados. Da janela da minha cozinha _ onde me debruço por alguns bons minutos, assim que chego em casa, para fazer o jantar _, não há como não olhar para a casa alheia. Bem que tento, mas não dá mesmo. A não ser que eu vende meus olhos, torça o pescoço para as costas ou não tire os olhos da pia, sem elevar a cabeça um só instante.
Pois bem, as moças estavam sem luz. Pagavam por uma falha de ex-moradores, que desocuparam o imóvel sem pagar as contas. Cortaram. Imaginei como seria ruim, estar ali, sem o barulho da televisão, a luminosidade da luz elétrica fazendo a noite virar dia, a possibilidade de um belo banho quente... Até que, entre as velas acesas sobre a mesa, onde elas conversavam, sorriam e bebericavam alguma coisa, percebi o quanto estavam bem, o quanto aquele apagão havia aproximado as duas.
Como disse, não quero ficar olhando a vida alheia, não é mesmo do meu feitio, mas não pude evitar. Sempre que cheguei, nos dias em que a luz imperava naquela casa, o local parecia vazio. Com luz, mas vazio. Não via ninguém passar, não ouvia vozes, mas a televisão sempre estava ligada.
Penso que, para não perder nenhum lance das novelas, elas preferiam ficar quietas, sem muita conversa, sem tempo para perder (uma com a outra), sem trocas.
Lembrei dos velhos dias de apagão, quando faltar energia era algo comum nos vilarejos da infância, principalmente no verão, quando a praia se enchia de turistas. A sobrecarga sempre nos deixava na mão.
Numa das noites mais esperadas do ano, perto do Natal, quando toda a vizinhança havia combinado fazer quitutes e se reunir para ver o show de Roberto Carlos, a distribuidora não suportou e a luz foi embora bem na hora marcada. Lembro que praguejamos por alguns minutos, esperamos que a sorte batesse à porta e nos trouxesse a luz de volta, até que alguém pegou um violão.
Fomos todos para o terraço, onde mangueiras, cajueiros e coqueiros nos protegiam e sopravam a brisa que vinha da praia. Jogamos esteiras no chão, forramos toalhas e trouxemos os quitutes. Deitei na esteira e ganhei de presente todas as luzes do universo, ali, só para mim. Não poderia haver espetáculo maior do que aquele, nenhum show chegaria aos pés.
Homens, mulheres, crianças, todos cantando juntos canções nossas, dos nossos pais, dos nossos avós, e as velhas canções de Roberto. Comemos, rimos, e de repente já nem lembrávamos que a luz havia ido embora. Estávamos completamente iluminados.
Vendo as luzes apagadas na casa das minhas vizinhas tive a vontade de também apagar as minhas, pegar o violão e acender minha alegria, com o violão em punho. De vez em quando, tenho para mim, é bom apagar as luzes.

Mágoa de cabocla 15:19

Mágoa é veneno quente que entorpece e mata devagar. Mágoa é pior que cigarro, cachaça, mais letal que qualquer droga. Mágoa anestesia os sentidos, faz tremer as pernas, tira o ar, rouba a razão, cobre a gente de frio. Mágoa é coisa ruim, tipo mau-olhado: põe nódoa no viço, deixa os olhos fundos, corrói o corpo e a alma, em silêncio.
Um dos amigos do meu pai disse uma vez, naquelas conversas das sextas-feiras na varanda: “Prefiro uma dor de dente a sentir angústia. Não há nada pior do que levar nas costas uma mágoa mal curada, uma bordoada”.
Estava certo o amigo do meu pai. A dor de sentir-se traído, incompreendido, desrespeitado, ultrajado, é nó cego, como dizem os matutos. Não há ser humano que suporte calado. Não há quem diga que não está doendo, não há disfarce. E a tal da mágoa é coisa ruim de curar. Até se encontra o perdão, numa esquina qualquer. Contudo, perdoar não é esquecer. E isso é bem coisa de mágoa entranhada.
A mágoa bate na porta quando você pensa que já vai dormir em paz. Martela centenas de vezes as palavras que lhe cuspiram na face. Repete, feito disco arranhado, a romaria desafinada, badala aos quatro ventos a dor que lhe faz chorar. Faz questão de lembrar o que você pagaria qualquer preço para esquecer. Basta ensaiar um “não lembro mais” e a bruxa da mágoa diz “estou aqui”.
Há coisas que não se deve dizer a quem se quer bem. Porque isso quebra o elo sagrado que une os amigos, os irmãos, os amores. Há coisas que não se deve dizer a ninguém, porque o vento pode mudar a direção, a bola pode quicar e o tiro sair pela culatra.
Há sentenças que podem e devem ser ditas, mas há a escolha pelo caminho suave ou pela agressividade. E tem mais: a verdade é relativa e não foi comprada por ninguém. Portanto, cada um com a sua verdade, com a sua medida do que é certo e errado, sem julgar ou condenar ninguém por pensamentos opostos. Só quando a minha medida ultrapassar o limite do meu vizinho. Enquanto isso não acontece, cada um na sua e todo mundo junto. Isso é harmonia. É assim que a banda toca.
Essa história de que “a verdade tem que ser dita” dá nos nervos e só causa estragos. Tem gente que perde a mão e descamba a plantar mágoa quando cai no erro de que “a verdade tem que ser dita, a verdade tem que ser dita”. Cada um com sua verdade, cada um com suas querências, cada um com suas escolhas. E... todo mundo junto.
Hoje acordei com uma mágoa danada no peito. E dói que chega a dar arrepios. Uma hora vai passar, mas eu sei que não vou esquecer. Tudo porque alguém achou de tentar me dizer “verdades”. Alguém que quero tanto bem e que me é tão caro, cismou em me dizer verdades que não são minhas, que não me servem, que eu não compraria, que não quero para mim.
Mas não dá nada. Vou tocar em frente e fazer um dia melhor acontecer. Quem sabe a mágoa resolve me deixar cantar um samba, enquanto mando meu recado a esse amigo querido, tão equivocado a meu respeito? Eu sou feliz assim.

A estranha 15:16


Fazia frio naquela noite. O menino não se importava, queria ver a chegada da estranha. Há algum tempo o comentário no pequeno arruado era um só: ela vai chegar. Só falavam nela, só tinham olhos para a casinha amarela de janelas e portas sempre cerradas. E ele sentia que com ela algo de bom poderia acontecer ali, no lugar onde ninguém mais queria ir.
Plantou os pés na soleira. Agachou, levantou e sacudiu poeira tantas vezes que nem lembrava mais se estivera em outro lugar que não aquele: o batente da casa amarela. O pai havia saído cedo, quando a serração encobria o terreiro e não deixava passagem para visão alguma. O rio só dava sinal de estar ali porque era cantor dos bons e nunca parava de soprar a cantilena. Dia e noite.
As mãos gelavam. Juntava, levava à boca, jogava todo o ar dos pulmões para aquecer. Bermuda e camisa de tecidos gastos não lhe ofereciam o conforto necessário para o frio da serra. Chinelos rasos. Quase raspava os pés na areia grossa. Frio, frio, frio. Mas ele estava decidido: não arredaria o pé.
Quando o sono começava a lhe render, ouviu o ranger das rodas no caminho. Limpou os olhos, levantou e juntou-se ao cachorro, que latia alto na porteira torta. Demorou para perceber os vultos, que aos poucos se desvencilhavam da neblina baixa. Pararam em frente à casa e ele pôde ver então os longos cabelos finos e negros. Desde então, jamais saíram dos seus olhos. A pele parecia ter esquecido de brincar no sol. As mãos traziam dedos longos e delicados. Jamais haviam arado a terra, pensou. A estranha, apesar de não parecer com ninguém que conhecia, se fez parente próxima quando sorriu.
Obedecendo às ordens do pai, foi ajudar. Malas, caixas e aquele malote estranho, de couro preto. Tudo cheirava a cidade grande, a estrada e a mundo de verdade. A mãe chegou depressa, secou as mãos, que sempre estavam a serviço, ajeitou o lenço na cabeça e deu abraço tímido na moça. Ela era herdeira daquele pedaço de chão que ninguém era louco de querer. Pois ela quis. E ele ainda não entendia o porquê.
Café e bolo de milho, ao lado do fogão à lenha, finalmente trouxeram calor à madrugada que também resolveu chegar. E um brazeiro se formou no ar quando a moça abriu o malote de couro preto, tirou de dentro o instrumento de madeira e tocou para os anfitriões cansados.
O nome era difícil de aprender: “Rebeca?”, tentou o pai. “Rabeca, Chico, rabeca”, disse sorrindo a moça. Ficaram amigos. A rabeca o provocou por dias a fio, com a música que jogava todos os sons do mundo no ar. Às vezes gemia, reclamava, soluçava como as viúvas da seca com saudade dos maridos distantes. Outras, era alegre, serpenteava, gargalhava entre o riacho teimoso e a caatinga _ que se espalhava, malvada entre os resquícios de plantação.
O menino pegou paixão por aquilo, descobriu que a vida poderia lhe trazer surpresas boas, como a moça da cidade e a rabeca cantadeira. A música, aquela estranha maneira de juntar o céu e a terra através das cordas de metal, virou musgo na pele e no coração.

Canção das lavadeiras 15:10

Elas passavam cantando, antes mesmo do sol se exibir por inteiro e chamar todo mundo à vida, quando o friozinho da madrugada tentava segurar as horas, molhando a grama verdinha lá fora. Adorava o ritual dos sábados. Bastava ouvir o chiado dos chinelos e o burburinho do grupo, saltava da cama, lavava o rosto e me jogava.
A maioria (entre as quinze) já havia dado o filho para meus pais batizarem, então, me deixavam seguir estrada afora. O que para elas era um ritual, misturando obrigação e prazer, dever e alegria, para mim era a mais perfeita festa. O caminho era longo, mas quase não sentia o barro do chão querendo virar braseiro sob meus pés.
A empreitada tinha que valer a pena e render várias tarefas ao mesmo tempo. Já que eu insistia tanto naquilo, teria que me fazer útil e ajudá-las. Era preciso catar carrasqueiras, coquinhos da estrada, pitanga, caju e araçá, que seriam jogados dentro da antiga saca de farinha _ maloca da nossa produção da beira de estrada.
As árvores do caminho eram de todos que passassem por ali, então, se eram de todos também nos pertenciam. Os restos mortais dos coqueiros também, por isso podíamos pegar toda a lenha do mundo, que ninguém nos cobraria depois.
Como dançarinas, equilibravam, sobre as cabeças, rolos de pano bem montados, onde levavam as bacias de alumínio, divinamente brilhosas, areadas, espelhando cada uma de nós.
Elas riam da minha festa e quando íamos nos aproximando do riacho, como mágica, começavam a cantoria. Uma chamava os versos, as outras cobriam o refrão. Saudades de maridos, roubados pelo mar. Louvações à Iemanjá, às sereias. Até a produção das casas de farinha virava música.
Eu me esbaldava de rio, de música, histórias e sorrisos fartos. O almoço era feito ali mesmo. Latões serviam de panela, onde caranguejos (catados no mangue ao lado) eram cozidos. Ostras eram tiradas nos talos finos das árvores fincadas na lama e comidas cruas, com sal. A água era levada em pequenas cumbucas de barro, fria e saborosa.
Não havia passeio melhor. Chegava em casa, no final da tarde, com o sol se despedindo do mundo, feliz. Depois de um bom banho, um belo prato de sopa e de aconchego de mãe, me entregava ao sono, embalada pelas cantigas do rio e pela felicidade pura, colhida das lavadeiras.

A tiriva 15:06


Foi um caso de amor com final infeliz, aquele. Trágico, digamos. A tiriva chegou em sua casa meio por acaso e a pegou de jeito. Ela, que sempre pareceu não dar a mínima para os bichinhos que vez por outra tentavam seduzi-la e serem recolhidos das ruas, caiu de amores pelo rascunho de papagaio. Não havia quem duvidasse que a recíproca era verdadeira.
O bicho também lhe tinha o maior afeto. Era até bonito de se ver. Ai de quem se metesse a besta e dissesse que a tiriva era feia, ou ameaçasse a integridade física da bichinha. A dona, zelosa, virava uma fera e devolvia na mesma moeda.
Quando ia para a escola, antes de sair, pegava a bichinha nas mãos, afagava, prometia voltar logo e se deixava bicar de leve. Ao voltar para casa, mal largava a mochila, era recepcionada pela serelepe prima das araras, que abanava o rabinho comprido, sacodia as penas e balançava a cabeça, em gestos frenéticos. O pai dizia que a tiriva só não falava para não ir à escola, de tão esperta que era. Parecia gente. Se estava zangada, se recusava a comer. Quando estava feliz, pulava entre as poltronas, ensaiava piados estridentes e mostrava festa com as bicadinhas gentis.
Mas o destino às vezes pode ser cruel, apronta armadilhas e havia um inimigo à espreita. Certo dia, sem aviso, a vizinha também caiu de amores por um bicho. O gato mais peludo e de olhos maquiavélicos que ela já havia conhecido. “Não gosto de gatos, não gosto de gatos”, repetia, defendendo-se da presença ameaçadora à sua tiriva.
Passou a não deixar mais a bichinha passear solta pela casa. Seu mundo _ enquanto o gato da vizinha permanecesse por perto _ seria resumido às quatro paredes do quarto. Enchia de mimos, para que ela não sofresse e pensava que assim tudo estaria bem.
Um dia, voltando da escola, correu para o afago corriqueiro e, ao vencer a sala, veio o susto: alguém havia deixado a porta do quarto aberta. Baque no peito. Chamou pela tiriva, correu todos os cômodos, pânico crescendo. Ao chegar ao quintal, viu o peludo de olhos amarelos, cruéis, feliz da vida, empapuçado, pensando na vida sobre o muro. No cantinho da parede, as penas coloridas eram o sinal de que a tiriva escapou e foi direto para as garras da morte.
Chorou, lamentou, prometeu nunca mais ter bicho algum. Jurou ódio mortal a todos os gatos. Cresceu, comprou um peixe beta. E foram felizes para sempre... até ele morrer mofado no aquário.

Banho de Chuva 13:46

Aquele dia comprido parecia que não ia acabar mais. Chuva que não parava. Fina, grossa, com vento, silenciosa. Chuva, chuva, chuva. E eu ali, dentro de casa, olhando pelas frestinhas que me restavam pela janela. Querendo brincar lá fora, sem poder. "Invente algo pra fazer em casa", disse meu pai. "Já pensou nas crianças que não têm onde morar?", soltou, lá da cozinha, a minha mãe.

Eu não estava muito querendo saber das outras crianças, sinceramente. Nem queria perder meu tempo com invencionices de menina dentro de casa. Queria mesmo era aquela chuva. Sim, lá fora. Queria pular na lama e me sujar de vermelho, queria fazer bonecos e panelinhas de barro, para depois brincar de casinha com as amigas, queria cair no mar e fingir que era um lençol quente, me protegendo da água que caía do céu.

"Menino não tem querer", era o que diziam os mais velhos. E eu tinha que obedecer, sem bico, sem reclamação e sem batidinhas no pé. Não adiantava, aquela chuva não seria minha. Não seria? Pois bem...

Esperei o primeiro descuido dos meus pais, que não dispensavam o cochilo depois do almoço. Olhei em volta, conferindo se havia irmã mais velha na área de risco, pisquei para a irmã do meio _ que também sonhava com o aguaceiro na rua _ e pulei a janela. Quase perco os dedos das mãos, na pressa da fuga, e machuquei feio os joelhos, quando ganhei as ruas. Nada importava, a chuva era minha.

Deus nos abençoa quando manda chuva. Isso eu aprendi com minha avó sertaneja. Deus fala com a gente através dela. Quando está zangado, manda trovões e raios. Quando está contente, manda a garoa fina, para regar o mundo todo. Deus é chuva fina, molhando a grama, a calçada, o barro vermelho, o mar. Deus corre no riacho, evapora e volta para o céu.

Eu já sabia disso, quando era criança. Adorava a chuva, quando podia desfrutar dela. Dias de chuva só tinham graça se eu podia brincar na rua. A travessura daquele dia, é claro, foi descoberta. Rendeu uma febre, roupas molhadas e sermões. No entanto, fui feliz.

Hoje eu quis muito correr na chuva, chamar todo mundo para a minha farra. Não deu. Meu dia foi comprido, cheio de saudades e de chuva fina (dentro e fora de mim).

Estranhos 13:13

Eu, minhas perspectivas e minhas crenças, de mãos dadas pelas ruas de Tubarão. Com todas as minhas certezas amarradas, achando saber quase tudo do pouco que vivi, esbarrei naquele homem.
 
O sol fervente do quase meio-dia não ajudava muito a traduzir qualquer pista sobre pessoas ou coisas. Eu queria mesmo escapar do calor, pagar as contas e apressar o passo, antes do trabalho. Mas ele, ali no meio do caminho, me fez parar e olhar para os lados, diminuindo a marcha agitada da sexta-feira.
 
Falando apressado _ numa parada de ônibus, apoiado na velha bicicleta _ era ouvido por estranhos, que absorviam sua vida, espantados. Sem paradeiro, ganhava o mundo. Encharcado de suor, maltrapilho, barba por fazer, misturava força e cansaço nas expressões.
 
Devo ter ficado mesmo impressionada, porque ele me percebeu e se percebeu comigo. Despediu-se dos ouvintes e atravessou a rua, quase ao meu lado. Fingi estar novamente em minha pressa cotidiana e entrei numa loja qualquer. Minutos depois, ele também entrou.
 
Sem licença, pediu a atenção dos clientes, funcionários, abriu sua maleta e pediu ajuda. Poucos se importaram, cheios de suas vidas, perspectivas e crenças, como eu. Tentei ser um deles, mas não deu. Parei e ouvi. Dei minha parca contribuição e fui abençoada, em retribuição.
 
Entre os que pareciam não estar ali, alguém lhe jogou a arrogância comum dos humanos na face. Em resposta, ele usou de altivez e desenrolou todo seu novelo. Ficamos ali, acompanhando o duelo dos dois, que não tinha fim. Em seu falatório, disse não se surpreender mais com o mundo. As estradas, as dores, as humilhações e desilusões já haviam lhe ensinado tudo. Desaprendeu a ser gente, disse. Preferia lidar com bichos. "A maldade é o que alimenta esse tempo. Os bons silenciam para não serem tragados", disparou.
 
Senti covardia e compaixão se apossando de mim. Penso, aqui comigo, o que faz dos homens irmãos? O que faz alguém julgar pela roupa que cobre um corpo, pelo sapato que se usa, pelo suor ou pelo perfume?
 
O que faz um semelhante cuspir veneno no outro pela cor da pele ou pelo dinheiro que se leva no bolso? O que faz de mim alguém melhor do que aquele homem? É triste o desconhecimento humano a respeito da própria raça e dos motivos de estarmos aqui, no mesmo tempo, no mesmo espaço.
 
Tudo finda, tudo é tão breve, tudo acaba em pó. Voltei para casa lembrando das palavras ásperas que o moço da loja jogou no pedinte e das palavras boas que ele me lançou. Quem na verdade é o miserável dos dois?
 
Não sei se mereço as bênçãos que recebi, através dele. No entanto, me sinto bem com o presente. Do moço rude nem lembro o rosto ou os panos que lhe cobriam de arrogância. Mas aquele velho _ que seguiu seu caminho com sua história e sua velha bicicleta _ sei que irá comigo.