Um dedo de prosa
Germana Telles
Banzo | 12:44 |
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Menino quieto só pode estar doente ou aprontou alguma travessura. Essa era a regra dos adultos nos anos de minha infância. E era bem difícil lidar com essa lei torta, pensávamos nós. Afinal, o que mais valia a pena: ser arteiro ou obedecer todas as ordens dos mais velhos? Sim, porque aqueles que saíam da linha eram sempre pegos, de uma forma ou de outra, recebendo algum castigo. E os que mostravam o banzo do vento Nordeste, fatalmente eram levados à casa do pinhão roxo. Era lá que morava seu Biu, o benzedeiro.
Ali moravam todos os mistérios e temores do mundo. Pequena, mal aprumada no pau-a-pique, com palhas sobre as ripas frágeis, teto quase tocando o chão. Na soleira, troncos de coqueiros descascados, cobrindo o barro vermelho do piso tosco. Embaixo do barro do chão deveriam se esconder todos os segredos da cidade, colhidos pelas rezas fortes.
Gatos, dois cachorros magros e muitas galinhas no terreiro, cercado pela plantação do pinhão roxo, usado para arrancar os males de qualquer cristão.
O banzo, sem querer me encontrou um dia. Não comia, perdi o viço, os ossos saltavam à pele, diziam as comadres de minha mãe. Dona Iracema, preta velha - que me fazia todas as vontades e me dava torrões de café com açúcar nos fins de tarde – pediu e foi atendida. Seu Biu era o remédio.
Busquei o topo da goiabeira. Meus irmãos me encontraram e me entregaram de bandeja. As batidas em meu peito explodiam nos ouvidos, na testa, na palma da mão, nos pés. O banzo só piora, o banzo só piora, leva logo minha comadre. Ouvi a romaria por todo o caminho.
Entrei quase arrastada, mais de medo que de doença. Fechei os olhos e senti o bafo quente do fumo de rolo invadindo meu rosto. Tossi e abri os olhos. Um enorme chapéu tomava todo o espaço do casebre. Dele surgia o rosto caboclo, perfurado, com poros enormes, talhos profundos esculpidos pelas rugas. Aquela mão crespa, descomunal, de unhas marrons, tocou rapidamente meu rosto. “Não tenha medo, menina-nova”. O que veio depois parecia ser dito em língua de outro mundo. O pouco que entendi, enquanto o pinhão roxo lambia meu corpo, jamais esqueci.
“Todo o mal, seja macumbeiro e seja feiticeiro, saia do teu corpo pelas mãos de Deus. Todo o mal, seja macumbeiro e seja feiticeiro, saia do teu corpo pelas mãos de Deus”. Em seguida, vinha o refrão afinado das comadres de minha mãe: “Amém, Amém”.
Aquilo deve ter durado menos de meia hora, mas para mim foi a eternidade. O pinhão, depois de balançado, batido, maltratado, murchara. “Olhado forte na menina quebrou todo o pinhão. Mas a coisa ruim foi embora. Banho de lavanda e mingau de milho”.
De vez em quando o banzo do mundo tenta me pegar. Espanto o quebranto com as lembranças, com os amigos e mingau de milho. E, sempre que posso, tento trazer de volta a pureza de minha gente simples, que desconhecia completamente os verdadeiros males do mundo.
Ali moravam todos os mistérios e temores do mundo. Pequena, mal aprumada no pau-a-pique, com palhas sobre as ripas frágeis, teto quase tocando o chão. Na soleira, troncos de coqueiros descascados, cobrindo o barro vermelho do piso tosco. Embaixo do barro do chão deveriam se esconder todos os segredos da cidade, colhidos pelas rezas fortes.
Gatos, dois cachorros magros e muitas galinhas no terreiro, cercado pela plantação do pinhão roxo, usado para arrancar os males de qualquer cristão.
O banzo, sem querer me encontrou um dia. Não comia, perdi o viço, os ossos saltavam à pele, diziam as comadres de minha mãe. Dona Iracema, preta velha - que me fazia todas as vontades e me dava torrões de café com açúcar nos fins de tarde – pediu e foi atendida. Seu Biu era o remédio.
Busquei o topo da goiabeira. Meus irmãos me encontraram e me entregaram de bandeja. As batidas em meu peito explodiam nos ouvidos, na testa, na palma da mão, nos pés. O banzo só piora, o banzo só piora, leva logo minha comadre. Ouvi a romaria por todo o caminho.
Entrei quase arrastada, mais de medo que de doença. Fechei os olhos e senti o bafo quente do fumo de rolo invadindo meu rosto. Tossi e abri os olhos. Um enorme chapéu tomava todo o espaço do casebre. Dele surgia o rosto caboclo, perfurado, com poros enormes, talhos profundos esculpidos pelas rugas. Aquela mão crespa, descomunal, de unhas marrons, tocou rapidamente meu rosto. “Não tenha medo, menina-nova”. O que veio depois parecia ser dito em língua de outro mundo. O pouco que entendi, enquanto o pinhão roxo lambia meu corpo, jamais esqueci.
“Todo o mal, seja macumbeiro e seja feiticeiro, saia do teu corpo pelas mãos de Deus. Todo o mal, seja macumbeiro e seja feiticeiro, saia do teu corpo pelas mãos de Deus”. Em seguida, vinha o refrão afinado das comadres de minha mãe: “Amém, Amém”.
Aquilo deve ter durado menos de meia hora, mas para mim foi a eternidade. O pinhão, depois de balançado, batido, maltratado, murchara. “Olhado forte na menina quebrou todo o pinhão. Mas a coisa ruim foi embora. Banho de lavanda e mingau de milho”.
De vez em quando o banzo do mundo tenta me pegar. Espanto o quebranto com as lembranças, com os amigos e mingau de milho. E, sempre que posso, tento trazer de volta a pureza de minha gente simples, que desconhecia completamente os verdadeiros males do mundo.
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