Um dedo de prosa

Germana Telles

Meia-noite 13:21

Dizem que as crianças são puras, ingênuas. Penso que sabem tudo e escondem o jogo, para que possam desfrutar em paz dos melhores anos de suas vidas. Dizem também que os cachorros são companheiros, leais. Os gatos ariscos e os cavalos misteriosos. Mas nada dizem das cabras. Sim, sim, as cabras. Com uma delas aprendi que os bichos nos mantêm cativos, e não o contrário.

Morando numa cidadezinha do interior pernambucano - onde o apito da usina de açúcar mantinha a vida dos moradores sob controle e os banhos de rio eram o melhor programa do fim de semana - meus companheiros de brincadeiras eram os filhos dos marceneiros, pedreiros e aboiadores.


Nossa rotina era escola, campinho tomado de lama perto da linha do trem, bolas de gude, piões, pipas e circos improvisados no quintal de casa. Meninos e meninas desempenhavam o mesmo papel: o de exercer a liberdade plena.

Um dia, porém, a cabra do vizinho deu cria. Rebuliço geral. Larguei as sandálias de borracha, esqueci tudo e corri para ver. De dentro da bolsa rosada, vimos a cabeça abrir caminho. O dono dos bodes e cabras, que dividiam a rua conosco durante o dia, ajudou o filhote. Fêmea, preta, com uma mancha branca em forma de nuvem na testa. Pernas tortas e frágeis. Tratou de ficar de pé. Quis, no mesmo minuto, ela para mim.

“Por favor, eu como tudo, durmo cedo, vou para a escola sem chorar e nunca mais brigo na rua”, prometi em casa. A ladainha durou dias. Meus apelos foram ouvidos. Voltei da escola e passei na garagem de tábuas úmidas onde ela morava. Não estava mais lá. “Foi vendida”.

Entrei na cozinha com a gola do uniforme encharcada. Culparia meus pais até o fim dos meus dias pela maldade de me afastar dela. Meu lamento não durou cinco minutos. Um berro estridente e fino chamou minha atenção e me levou ao quintal. Lá estava ela. Amarrada, com sino de latão no pescoço, tentando se livrar da corda entre saltos e balançar de cabeça, agitada.

Meia-noite, batizei. Chamava e ela atendia correndo. Levei para o campinho e surpreendeu nas roubadas de bola, enlouquecendo os meninos – que tentavam ensinar o truque aos seus tolos cachorros. Esperava minha chegada das aulas feito cão de guarda. Ao primeiro sinal de meus passos na esquina, apoiava as patas no muro e berrava. Foi assim por quase três anos.

Num sábado, igual a todos os sábados, fizeram almoço de despedida da cidade em nossa casa. Pai transferido para a capital. Vida nova. Festa. Vizinhos, colegas da repartição, parentada.
Estranhei o silêncio no quintal. Corda jogada num canto. Baque no peito. “Ela fugiu”, me disseram. “E não teremos como procurar. Mudamos amanhã”. Chorei a viagem inteira. Pensava que ela voltaria e encontraria tudo vazio, sem ninguém. Sofri por mim e por ela.

Anos mais tarde, numa conversa informal de domingo - enquanto saboreávamos o bode na brasa em casa – me contaram a verdade. “Você comeu a Meia-noite no almoço de despedida. Não havia como trazer”.
Meus vinte e poucos anos não adiantaram de nada. Fechei os olhos, corri para aquele quintal, naquela casa de cidade pequena, soltei a corda e deixei que fugisse. “Desculpe, minha filha, não havia como trazer”, repetiram. “Ela veio, ela veio”, disse em meio a um sorriso desbotado. Perdoamos.

Manga com leite 13:10

Misturar manga com leite pode fazer mal. Assim como tomar banho depois do almoço, lavar cabelo em noite de lua cheia, vestir a roupa pelo lado avesso. Crendices que regem a vida e vão nos ensinando, sob o carinho das mães e avós, a ter limites. Demorei a tomar manga com leite e ainda hoje vou guiando meus passos segundo o que me ensinaram em casa.

Por via das dúvidas, por exemplo, não corto encruzilhadas, não passo embaixo de escadas, não vou nadar depois do almoço. Se uma coruja pia perto de casa, bato na madeira, peço proteção aos céus. Se alguém engasga, apelo para São Braz, levanto os braços e acredito ter salvado a vida do cristão afogado. Tem coisas que são assim, não saem de nós e vão moldando nosso caráter, desenhando nosso destino.

Entre as coisas que ficaram em mim, grudadas entre a pele e a alma, está o meu modo de olhar o ser humano. E, falando muito sério, não consigo achar que um carro do ano possa valer mais do que um bom amigo. Não consigo entender como há quem meça o valor de gente como quem põe preço num saco de farinha.

Dia desses, lá em casa, me falaram que preciso ter mais ambição nessa vida. Que o mundo não gosta de quem gosta do mundo. Eu não sei não. Prefiro mesmo apostar no que me ensinaram. Eu gosto de gostar das pessoas. Claro que não é qualquer um que atravessa minha intimidade. Dou preferência a quem me encara e me enxerga. Compro briga por quem tem os pés no chão e conhece a textura da areia fina. Argumentando com a pessoa que tentava me dar mais rumo na vida, contei a história de Maria e seus sapatos finos.

Ela colecionava mais de oitenta pares. Botas, sandálias, tênis, altos, baixos, pretos, brancos, coloridos... Tinha um orgulho, a moça, de seus sapatinhos... Um dia, olhou meus pés e queixou-se do meu velho tênis esfolado. Mas ele está em meus pés, criatura! O que te incomoda? "Não parece com você e não vai lhe levar a lugar algum", argumentou. Não tentei lhe dizer o que pensei, naquele momento. Palavras ao vento, apenas.

Voltei para casa tentando entender como alguém poderia viver assim: num relacionamento apaixonado com oitenta pares de sapatos. Eu, com meu tênis surrado, andei em mil estradas, fiz mil amigos e estiquei minha história. Ela não pisou solo algum além dos limites de seu quarto. Desde aquele dia, não a procurei mais. Não daria certo levar adiante aquele convívio. Somos feitas de massas distintas, moldadas por oleiros bem desiguais. Dei razão à minha mãe, minhas tias e minha avó. Não se deve misturar manga com leite. A mistura pode ser bem ácida e pode fazer mal.