Um dedo de prosa

Germana Telles

O jubilado 16:02

O cheiro do café enchia o ar de bom dia. Aos poucos a cidade amanheceu. Fartura de expectativas e paz. O ruído no portão foi se transformando em algazarra quando elas entraram esbaforidas, aceleradas, falando ao mesmo tempo. Novidades à vista, pensamos.
Na cozinha o fuzuê estava armado. Minha mãe tentava acalmar as falastronas, que zumbiam, gesticulavam, despejando nomes conhecidos, entre goles fartos de café e enormes pedaços de bolo. "Jubilado, o menino, comadre! Jubilado", anunciava Sônia. "Dizem que a festa vai ser grande dessa vez. Já mandaram benzer a capela nova, tem banda de música ensaiando no salão paroquial e dizem que vem gente de tudo o que é canto para as homenagens", soltou Luzia.
Nos entreolhamos - eu e meus irmãos - e tentamos entender o porquê de tanta confusão. Afinal, quem era o jubilado, santo Deus? E por que festa para uma coisa assim? "O menino fez bonito", refletiam, reticentes. Batata! Elas não sabiam que o "feito" do menino era na verdade uma tragédia. Nos divertimos com aquilo, já no primeiro instante em que entendemos o engano. Dona Nadir atravessou o caminho entre o terraço e a cozinha feito um raio. O pano de prato gasto, amarelado, jogado nos ombros, indicava a sofreguidão dos curiosos. Lenço retocado de minuto em minuto. Corpo estourando em bolhas. Era conhecida a alergia da bodegueira, madrinha de todos os bêbados do vilarejo. O balcão de Dona Nadir era ponto de encontro de todos eles, dia e noite. Tudo que acontecia nos arredores chegava primeiro por lá. Era a imprensa local, aquele balcão tosco.
Dessa vez ela soube com atraso e a urticária deu sinal de vida. "Mas já avisaram ao prefeito?". Sim, sim, o prefeito já havia sido avisado, as diretoras dos grupos escolares, as benzedeiras, cozinheiras, fazendeiros, todo mundo sabia do grande triunfo de Vandelson na Capital. Jubilado. Minha mãe tentava falar, mas não conseguia. "Não tem que fazer festa, gente. O menino foi jubilado", tentou. Os olhares praticamente a fuzilaram. Podíamos quase ouvir os pensamentos das futriqueiras. "Ela está é com inveja porque não foi filho dela". Saíram em cortejo silencioso, dizendo voltar mais tarde.
Corremos pra calçada. Sentada no muro de casa, vi passar meninos de pernas finas empurrando carros-de-mão com gelo e pó-de-serra, cabritos com pés amarrados (prontos para o abate)e engradados de cerveja. Todo mundo queria dar sua contribuição para o herói da cidade. À noite a festa foi inesquecível. Discursos, foguetório, forró, comida e bebida até não se querer mais. No palanque, Vandelson tremia - mudava de cor, sorria amarelo, nos olhava sem jeito. Ele sabia que nós sabíamos. A diversão foi maior do que pensávamos. Jubilado.
Jamais vou esquecer o dia seguinte. Faixas no chão, restos de festa. Na parada do ônibus, antes de ir para a escola, encontrei o homenageado, triste, com mochila do lado. Depois da festa, foi forçado a não iludir mais os pais. Expulso de casa. Vergonha.
Durou pouco tempo a mágoa. O jubilado hoje é respeitado pai de família, longe da cidadezinha que lhe fez herói. A história nunca foi esquecida por lá. Dizem que pensaram até em erguer estátua. Sorte que alguém achou um dicionário a tempo. O dono de todas as pompas e glórias acabou virando a piada do século.

A companheira 15:53

Era a minha apresentação no teatrinho da escola. Estávamos vestidos com as túnicas azuis (horrorosas, por sinal) da cor do céu, com uma corda grossa amarrada à cintura, imitando os apóstolos, em pleno altar da capela do colégio. Minha única fala era anunciar que o Salvador havia nascido, e só. O resto era acompanhar as falas em que todos faziam aclamações. Tudo muito fácil, não tivesse a personagem principal apenas seis anos de idade.
Aquela minha estreia poderia ter sido apenas mais um trabalho de escola, mas foi bem mais, porque naquele dia descobri que havia alguém do meu lado, sempre, com uma força descomunal me empurrando para tudo que era bom nessa vida.
Assim que me lancei à frente e soltei a fala, a vi chegar. Trazia uma sacola de feira pendurada num dos braços e o rosto corado. Não sei se de emoção ou pelo sol de quarenta graus lá fora. Não sei mesmo se o sol estava lá fora ou se ela era, inteira, o próprio sol.
Fomos cúmplices, eu e ela, a vida inteira. Dela eu herdei os altos e baixos. Em alguns momentos sou um mar de águas calmas e bastam alguns segundos para me transformar num rio pronto para despencar corredeira abaixo. Herdei também o horror pelas injustiças, pela deslealdade, pelo egoísmo, pela ganância. Levo comigo o apego à família, às raízes, a vontade de festa em cada coisa do dia. Levo comigo a fúria destemperada ao ver um amigo ou irmão sendo desmerecido ou pisado. Levo comigo as canções de ninar, o colo macio, o abraço silencioso, as histórias antes de dormir.
Levo comigo as broncas, o leite quente nas noites com febre, o sorriso iluminado, as danças em nossa sala, o amor maior.
Já quis muitas coisas nessa vida, entre os seis e os trinta e seis anos de estrada. Já quis cantar, ela me deu violão e voz. Quis ganhar o mundo, ela me abriu as estradas, me entregando a todos os anjos e santos quando partia. Quis voltar para casa, ela me acolheu sem porquês nem senões. Já quis muito, sonhei alto. Mas nada me fazia mais contente do que chegar em casa e encontrá-la. Do que ter a quem pedir a bênção, do que saber que em algum lugar eu tinha um pedaço de mundo que me acolheria. Eu tinha para onde voltar.
Hoje, trocaria todos os anos da minha vida _ os que já tive e os que, porventura, terei. Trocaria todas as festas, todos os encontros, todas as estradas, tudo que fiz, pelo direito de tê-la de volta. Sei que ainda há muito a buscar, que não há por que parar quando o caminho ainda aponta para muito longe além do que os olhos alcançam. Mas ela fazia a diferença.
Ontem troquei ideias com alguém bem próximo e vimos que pensamos igual. Não há coisa melhor no mundo que mãe. Sem ela, parece que todo o nosso corpo deu um nó. Os pés travam, a voz falta, a infância volta a bater na porta e todos os bichos-papões saem de suas tocas.
Não há um dia em que eu não pense em nossa amizade. Mesmo que eu viva até esquecer de mim, mesmo que eu consiga tudo que eu pensei, não a esquecerei, nem por um segundo sequer.

Sobre a doçura da vida 15:44

Voltávamos da escola, sempre falantes, mais juntos do que em qualquer outro momento _ afinal, aquele era o nosso instante, quando éramos só nós dois, dividindo as primeiras horas dos nossos dias.
Os mais velhos seguiam à frente, porque andar de mãos dadas com o pai era coisa para quem ainda levava lancheira e usava uniforme infantil demais. Eu adorava ser a caçula e ter o privilégio que eles desperdiçavam. Tolos, que não aproveitavam os conselhos, que não desfrutavam dos sorrisos silenciosos (fazendo o corpo dançar, como se a alma se divertisse e mandasse lhe acompanhar na festa).
Quando as minhas frases soltas jogavam mais ingenuidade do que o costume, então eram gargalhadas fortes que enchiam o ar. Eles, os mais velhos, fingiam não se importar, mas então eu gargalhava junto, balançava o corpo junto, provocava com a nossa farra.
Num daqueles dias, porém, abusei da paciência do meu velho, quase ganho umas palmadas, mas entendi o significado da doçura, primã-irmã do amor de pai. Passamos por uma vitrine tentadora, loja nova no caminho, com filhotes de cães pulando para todos os lados. Latidos finos, patas minúsculas e arredondadas, pelos fofinhos, olhos espertos pedindo colo. “Quero um, compra?”, o pedido. “Não”, a sentença curta e definitiva. “Quero um, quero um, quero um” foi a ladainha pelo longo trajeto, uma quadra após a outra. Atrasei os passos, empaquei, ameacei greve de silêncio, reclamei da vida. E ele, firme. Até que _ com aquela compaixão que só os pais sentem frente ao choro de um filho _ ele sugeriu: “Que tal um pão doce?”.
Amuei e foi difícil desfazer a tromba. Onde já se viu oferecer um pão doce em troca daquele cachorrinho perfeito? Havia perdido a batalha. Fui rendida e cedi aos encantos dos pães cheios de coco açucarado. Ele parou no balcão, pediu os pães e ficou ali, pacientemente, esperando que desfrutássemos do lanche em horário indevido e que certamente lhe renderia reclamações em casa.
Entre uma mordida e outra, seus olhos me acertaram. Toda a malcriação já havia sumido, da minha parte. Todo o amor do mundo permanecia com ele, feliz diante das crias. Terminado o lanche, seguimos adiante, de volta para casa. Colamos novamente nossas mãos e retomamos os sorrisos de onde paramos.
Entre tantas outras coisas boas que meu pai me deixou, a doçura dos seus gestos é meta que tento alcançar diariamente. Mas, confesso: estou longe de chegar aos pés de tamanha grandeza.

Apaguem as luzes 15:40

Chegando do trabalho, durante a semana, fui surpreendida com o apartamento das minhas vizinhas às escuras. Somos sempre levados a buscar respeitar os que dividem conosco o mesmo espaço no condomínio, mas isso fica complicado quando os apartamentos são praticamente colados. Da janela da minha cozinha _ onde me debruço por alguns bons minutos, assim que chego em casa, para fazer o jantar _, não há como não olhar para a casa alheia. Bem que tento, mas não dá mesmo. A não ser que eu vende meus olhos, torça o pescoço para as costas ou não tire os olhos da pia, sem elevar a cabeça um só instante.
Pois bem, as moças estavam sem luz. Pagavam por uma falha de ex-moradores, que desocuparam o imóvel sem pagar as contas. Cortaram. Imaginei como seria ruim, estar ali, sem o barulho da televisão, a luminosidade da luz elétrica fazendo a noite virar dia, a possibilidade de um belo banho quente... Até que, entre as velas acesas sobre a mesa, onde elas conversavam, sorriam e bebericavam alguma coisa, percebi o quanto estavam bem, o quanto aquele apagão havia aproximado as duas.
Como disse, não quero ficar olhando a vida alheia, não é mesmo do meu feitio, mas não pude evitar. Sempre que cheguei, nos dias em que a luz imperava naquela casa, o local parecia vazio. Com luz, mas vazio. Não via ninguém passar, não ouvia vozes, mas a televisão sempre estava ligada.
Penso que, para não perder nenhum lance das novelas, elas preferiam ficar quietas, sem muita conversa, sem tempo para perder (uma com a outra), sem trocas.
Lembrei dos velhos dias de apagão, quando faltar energia era algo comum nos vilarejos da infância, principalmente no verão, quando a praia se enchia de turistas. A sobrecarga sempre nos deixava na mão.
Numa das noites mais esperadas do ano, perto do Natal, quando toda a vizinhança havia combinado fazer quitutes e se reunir para ver o show de Roberto Carlos, a distribuidora não suportou e a luz foi embora bem na hora marcada. Lembro que praguejamos por alguns minutos, esperamos que a sorte batesse à porta e nos trouxesse a luz de volta, até que alguém pegou um violão.
Fomos todos para o terraço, onde mangueiras, cajueiros e coqueiros nos protegiam e sopravam a brisa que vinha da praia. Jogamos esteiras no chão, forramos toalhas e trouxemos os quitutes. Deitei na esteira e ganhei de presente todas as luzes do universo, ali, só para mim. Não poderia haver espetáculo maior do que aquele, nenhum show chegaria aos pés.
Homens, mulheres, crianças, todos cantando juntos canções nossas, dos nossos pais, dos nossos avós, e as velhas canções de Roberto. Comemos, rimos, e de repente já nem lembrávamos que a luz havia ido embora. Estávamos completamente iluminados.
Vendo as luzes apagadas na casa das minhas vizinhas tive a vontade de também apagar as minhas, pegar o violão e acender minha alegria, com o violão em punho. De vez em quando, tenho para mim, é bom apagar as luzes.

Mágoa de cabocla 15:19

Mágoa é veneno quente que entorpece e mata devagar. Mágoa é pior que cigarro, cachaça, mais letal que qualquer droga. Mágoa anestesia os sentidos, faz tremer as pernas, tira o ar, rouba a razão, cobre a gente de frio. Mágoa é coisa ruim, tipo mau-olhado: põe nódoa no viço, deixa os olhos fundos, corrói o corpo e a alma, em silêncio.
Um dos amigos do meu pai disse uma vez, naquelas conversas das sextas-feiras na varanda: “Prefiro uma dor de dente a sentir angústia. Não há nada pior do que levar nas costas uma mágoa mal curada, uma bordoada”.
Estava certo o amigo do meu pai. A dor de sentir-se traído, incompreendido, desrespeitado, ultrajado, é nó cego, como dizem os matutos. Não há ser humano que suporte calado. Não há quem diga que não está doendo, não há disfarce. E a tal da mágoa é coisa ruim de curar. Até se encontra o perdão, numa esquina qualquer. Contudo, perdoar não é esquecer. E isso é bem coisa de mágoa entranhada.
A mágoa bate na porta quando você pensa que já vai dormir em paz. Martela centenas de vezes as palavras que lhe cuspiram na face. Repete, feito disco arranhado, a romaria desafinada, badala aos quatro ventos a dor que lhe faz chorar. Faz questão de lembrar o que você pagaria qualquer preço para esquecer. Basta ensaiar um “não lembro mais” e a bruxa da mágoa diz “estou aqui”.
Há coisas que não se deve dizer a quem se quer bem. Porque isso quebra o elo sagrado que une os amigos, os irmãos, os amores. Há coisas que não se deve dizer a ninguém, porque o vento pode mudar a direção, a bola pode quicar e o tiro sair pela culatra.
Há sentenças que podem e devem ser ditas, mas há a escolha pelo caminho suave ou pela agressividade. E tem mais: a verdade é relativa e não foi comprada por ninguém. Portanto, cada um com a sua verdade, com a sua medida do que é certo e errado, sem julgar ou condenar ninguém por pensamentos opostos. Só quando a minha medida ultrapassar o limite do meu vizinho. Enquanto isso não acontece, cada um na sua e todo mundo junto. Isso é harmonia. É assim que a banda toca.
Essa história de que “a verdade tem que ser dita” dá nos nervos e só causa estragos. Tem gente que perde a mão e descamba a plantar mágoa quando cai no erro de que “a verdade tem que ser dita, a verdade tem que ser dita”. Cada um com sua verdade, cada um com suas querências, cada um com suas escolhas. E... todo mundo junto.
Hoje acordei com uma mágoa danada no peito. E dói que chega a dar arrepios. Uma hora vai passar, mas eu sei que não vou esquecer. Tudo porque alguém achou de tentar me dizer “verdades”. Alguém que quero tanto bem e que me é tão caro, cismou em me dizer verdades que não são minhas, que não me servem, que eu não compraria, que não quero para mim.
Mas não dá nada. Vou tocar em frente e fazer um dia melhor acontecer. Quem sabe a mágoa resolve me deixar cantar um samba, enquanto mando meu recado a esse amigo querido, tão equivocado a meu respeito? Eu sou feliz assim.

A estranha 15:16


Fazia frio naquela noite. O menino não se importava, queria ver a chegada da estranha. Há algum tempo o comentário no pequeno arruado era um só: ela vai chegar. Só falavam nela, só tinham olhos para a casinha amarela de janelas e portas sempre cerradas. E ele sentia que com ela algo de bom poderia acontecer ali, no lugar onde ninguém mais queria ir.
Plantou os pés na soleira. Agachou, levantou e sacudiu poeira tantas vezes que nem lembrava mais se estivera em outro lugar que não aquele: o batente da casa amarela. O pai havia saído cedo, quando a serração encobria o terreiro e não deixava passagem para visão alguma. O rio só dava sinal de estar ali porque era cantor dos bons e nunca parava de soprar a cantilena. Dia e noite.
As mãos gelavam. Juntava, levava à boca, jogava todo o ar dos pulmões para aquecer. Bermuda e camisa de tecidos gastos não lhe ofereciam o conforto necessário para o frio da serra. Chinelos rasos. Quase raspava os pés na areia grossa. Frio, frio, frio. Mas ele estava decidido: não arredaria o pé.
Quando o sono começava a lhe render, ouviu o ranger das rodas no caminho. Limpou os olhos, levantou e juntou-se ao cachorro, que latia alto na porteira torta. Demorou para perceber os vultos, que aos poucos se desvencilhavam da neblina baixa. Pararam em frente à casa e ele pôde ver então os longos cabelos finos e negros. Desde então, jamais saíram dos seus olhos. A pele parecia ter esquecido de brincar no sol. As mãos traziam dedos longos e delicados. Jamais haviam arado a terra, pensou. A estranha, apesar de não parecer com ninguém que conhecia, se fez parente próxima quando sorriu.
Obedecendo às ordens do pai, foi ajudar. Malas, caixas e aquele malote estranho, de couro preto. Tudo cheirava a cidade grande, a estrada e a mundo de verdade. A mãe chegou depressa, secou as mãos, que sempre estavam a serviço, ajeitou o lenço na cabeça e deu abraço tímido na moça. Ela era herdeira daquele pedaço de chão que ninguém era louco de querer. Pois ela quis. E ele ainda não entendia o porquê.
Café e bolo de milho, ao lado do fogão à lenha, finalmente trouxeram calor à madrugada que também resolveu chegar. E um brazeiro se formou no ar quando a moça abriu o malote de couro preto, tirou de dentro o instrumento de madeira e tocou para os anfitriões cansados.
O nome era difícil de aprender: “Rebeca?”, tentou o pai. “Rabeca, Chico, rabeca”, disse sorrindo a moça. Ficaram amigos. A rabeca o provocou por dias a fio, com a música que jogava todos os sons do mundo no ar. Às vezes gemia, reclamava, soluçava como as viúvas da seca com saudade dos maridos distantes. Outras, era alegre, serpenteava, gargalhava entre o riacho teimoso e a caatinga _ que se espalhava, malvada entre os resquícios de plantação.
O menino pegou paixão por aquilo, descobriu que a vida poderia lhe trazer surpresas boas, como a moça da cidade e a rabeca cantadeira. A música, aquela estranha maneira de juntar o céu e a terra através das cordas de metal, virou musgo na pele e no coração.

Canção das lavadeiras 15:10

Elas passavam cantando, antes mesmo do sol se exibir por inteiro e chamar todo mundo à vida, quando o friozinho da madrugada tentava segurar as horas, molhando a grama verdinha lá fora. Adorava o ritual dos sábados. Bastava ouvir o chiado dos chinelos e o burburinho do grupo, saltava da cama, lavava o rosto e me jogava.
A maioria (entre as quinze) já havia dado o filho para meus pais batizarem, então, me deixavam seguir estrada afora. O que para elas era um ritual, misturando obrigação e prazer, dever e alegria, para mim era a mais perfeita festa. O caminho era longo, mas quase não sentia o barro do chão querendo virar braseiro sob meus pés.
A empreitada tinha que valer a pena e render várias tarefas ao mesmo tempo. Já que eu insistia tanto naquilo, teria que me fazer útil e ajudá-las. Era preciso catar carrasqueiras, coquinhos da estrada, pitanga, caju e araçá, que seriam jogados dentro da antiga saca de farinha _ maloca da nossa produção da beira de estrada.
As árvores do caminho eram de todos que passassem por ali, então, se eram de todos também nos pertenciam. Os restos mortais dos coqueiros também, por isso podíamos pegar toda a lenha do mundo, que ninguém nos cobraria depois.
Como dançarinas, equilibravam, sobre as cabeças, rolos de pano bem montados, onde levavam as bacias de alumínio, divinamente brilhosas, areadas, espelhando cada uma de nós.
Elas riam da minha festa e quando íamos nos aproximando do riacho, como mágica, começavam a cantoria. Uma chamava os versos, as outras cobriam o refrão. Saudades de maridos, roubados pelo mar. Louvações à Iemanjá, às sereias. Até a produção das casas de farinha virava música.
Eu me esbaldava de rio, de música, histórias e sorrisos fartos. O almoço era feito ali mesmo. Latões serviam de panela, onde caranguejos (catados no mangue ao lado) eram cozidos. Ostras eram tiradas nos talos finos das árvores fincadas na lama e comidas cruas, com sal. A água era levada em pequenas cumbucas de barro, fria e saborosa.
Não havia passeio melhor. Chegava em casa, no final da tarde, com o sol se despedindo do mundo, feliz. Depois de um bom banho, um belo prato de sopa e de aconchego de mãe, me entregava ao sono, embalada pelas cantigas do rio e pela felicidade pura, colhida das lavadeiras.

A tiriva 15:06


Foi um caso de amor com final infeliz, aquele. Trágico, digamos. A tiriva chegou em sua casa meio por acaso e a pegou de jeito. Ela, que sempre pareceu não dar a mínima para os bichinhos que vez por outra tentavam seduzi-la e serem recolhidos das ruas, caiu de amores pelo rascunho de papagaio. Não havia quem duvidasse que a recíproca era verdadeira.
O bicho também lhe tinha o maior afeto. Era até bonito de se ver. Ai de quem se metesse a besta e dissesse que a tiriva era feia, ou ameaçasse a integridade física da bichinha. A dona, zelosa, virava uma fera e devolvia na mesma moeda.
Quando ia para a escola, antes de sair, pegava a bichinha nas mãos, afagava, prometia voltar logo e se deixava bicar de leve. Ao voltar para casa, mal largava a mochila, era recepcionada pela serelepe prima das araras, que abanava o rabinho comprido, sacodia as penas e balançava a cabeça, em gestos frenéticos. O pai dizia que a tiriva só não falava para não ir à escola, de tão esperta que era. Parecia gente. Se estava zangada, se recusava a comer. Quando estava feliz, pulava entre as poltronas, ensaiava piados estridentes e mostrava festa com as bicadinhas gentis.
Mas o destino às vezes pode ser cruel, apronta armadilhas e havia um inimigo à espreita. Certo dia, sem aviso, a vizinha também caiu de amores por um bicho. O gato mais peludo e de olhos maquiavélicos que ela já havia conhecido. “Não gosto de gatos, não gosto de gatos”, repetia, defendendo-se da presença ameaçadora à sua tiriva.
Passou a não deixar mais a bichinha passear solta pela casa. Seu mundo _ enquanto o gato da vizinha permanecesse por perto _ seria resumido às quatro paredes do quarto. Enchia de mimos, para que ela não sofresse e pensava que assim tudo estaria bem.
Um dia, voltando da escola, correu para o afago corriqueiro e, ao vencer a sala, veio o susto: alguém havia deixado a porta do quarto aberta. Baque no peito. Chamou pela tiriva, correu todos os cômodos, pânico crescendo. Ao chegar ao quintal, viu o peludo de olhos amarelos, cruéis, feliz da vida, empapuçado, pensando na vida sobre o muro. No cantinho da parede, as penas coloridas eram o sinal de que a tiriva escapou e foi direto para as garras da morte.
Chorou, lamentou, prometeu nunca mais ter bicho algum. Jurou ódio mortal a todos os gatos. Cresceu, comprou um peixe beta. E foram felizes para sempre... até ele morrer mofado no aquário.