Um dedo de prosa

Germana Telles

Michael and Neverland 07:23

Andávamos apressadas pelas ruas do Centro de Caruaru, eu e minha irmã mais velha, numa tarde de agosto de 1977. As idas ao Centro sempre eram uma farra para mim. Todas aquelas vitrines, o caminhar ligeiro de quem passava, o barulho dos vendedores ambulantes, carrinhos de pipoca, bicicletas. Tudo exigia pressa e nós obedecíamos ao ritmo ditado pela coletividade aflita de tempo, que não tinha mais como ser esticado.
 

Nada parecia poder deter aquele motor acelerado do dia, nada seria grande o suficiente para impedir a engrenagem, pensávamos. E minha irmã era exímia aprendiz. Cortava carros, ruas, desviava carrinhos-de-mão, postes e mexeriqueiras com arte. Eu ia junto, levada por ela, que apertava tanto minhas mãos a ponto de me fazer pensar que os ossos saltariam, esmagados. 

Perninhas de sabiá, finas, pés pequenos compondo xotes, sambas, xaxados, no bater das alpercatas nas calçadas: chelépt, chelépt, chelépt. Naquele dia, eles devem ter impresso um rock no asfalto.
 

A tarde, enfim, cedeu à notícia gritada aos quatro ventos pelos alto-falantes da Igreja Matriz: Elvis está morto. Nada, ninguém teria a força de deter a pressa? Engano. Elvis fez a história mudar e girou o mundo ao contrário naquele instante. Todos os ponteiros enlouqueceram, o tempo engatou a ré e puxou o freio de mão. Parecia mágica, pirlimpimpim. Tudo se rendeu à tristeza.
 

As mãos da minha irmã finalmente me deram carta de alforria e foram enxugar suas lágrimas. Músicas quentes encheram a cidade. Foi a primeira vez que me dei conta daquela voz, meio rouca, de algodão, cantando “Always on My Mind”. Cada poro se abriu pra deixar entrar aquela ternura, aquele conforto que a voz me trazia.
 

Conheci Elvis no dia da sua morte e descobri o poder de suas canções e sua voz em meio ao choro de uma cidade inteira, consternada, cortada pela dor. Os carros berraram menos, as buzinas pararam de tocar, as mulheres desistiram das fruticas, os homens cerraram as portas do comércio e o dia acabou antes das seis.
 

Essa semana voltei àquela tarde, quando o Rei do Rock deixou os palcos para virar lenda. Lembrei cada detalhe do dia em que o mundo começou a duvidar da morte do rei. Alguns ainda duvidam que ele sequer existiu: foi um sonho coletivo e, de repente, acabou. Outros garantem que ele anda disfarçado por aí, observando como conseguimos viver sem ele, desfrutando do anonimato, feliz da vida. Só os grandes têm esse poder, de deixar o corpo e virar lenda.
 

O mundo revive o mesmo torpor com a repentina saída de cena do Rei do Pop. Michael Jackson pregou uma peça em seus fãs e fugiu das despedidas. Alguns com certeza teimam em dizer que este foi mais um sonho. Era grande demais, estranho demais, luminoso demais para ser verdade. Agora, é hora de acordar e enfrentar a realidade, sem ele.
 

O 25 de junho vai entrar no calendário como o dia em que a Terra pariu mais uma lenda. Talvez Michael tenha se coberto com uma capa mágica, saído pelos fundos, em busca de outros caminhos. Ou, quem sabe, ele era mesmo o menino encantado, que vive entre fadas, duendes e piratas, e agora partiu feliz para a Terra do Nunca _ onde os ponteiros não andam e a juventude é eterna.