Um dedo de prosa

Germana Telles

Tarde demais 13:17

Ela disse que não sei mais sonhar. Ela e sua mania de teimar em dizer o que pensa, mesmo quando o que pensa nada tem a ver com a verdade. A minha verdade, pelo menos.
Ela me disse que já me viu melhor, que eu já tive mais viço, mais alma, mais paixão e mais vontade. Cobrou-me desejos dos vinte anos quando já beiro os quarenta. Cobrou-me a luz que me emprestou e esqueci de multiplicar, dividir e devolver.
Ela disse que nada mais em mim se parece comigo, que nada mais resta de bom, de tudo que já conheceu e lhe fez ter querência, afeto, admiração. Ela me disse. Disse tanto e com tamanha força que me despedaçou feio. Baqueei, tremi, suei frio e quente. Deixei-me levar por tristeza tão imensa que quase acreditei em tudo que ela disse. E com a mesma força.
Perdi o sono, a fome, a vontade. Perdi a fé, a esperança e tive medo, muito medo de ter morrido antes mesmo de viver tudo que eu pensei ter vivido. Tive medo de ter sonhado com tudo que achei tão meu, tão concreto, tão bonito e tão único. Tive medo de realmente não ser mais aquela menina. A que tudo enfrentava sem qualquer receio de não conseguir, a que buscava água na terra mais árida (e encontrava sempre), a que apostava, arriscava, com coragem e persistência.
Ela disse que era tarde demais para mim. E disse que não havia mais nada a ser feito por mim, comigo, para mim. Que os caminhos, todos, estavam fechados, apagados à minha frente. Que a luz no fim do túnel não existia, que os meus dias eram findos e minhas preces certamente não seriam mais ouvidas por Deus. E me falou em caridade... em caridade.
Ouvi tudo com amargo terrível nos lábios. Minhas lágrimas deixaram sulcos em meu rosto, marcaram a ferro a minha alma. Por onde passaram, arderam como brasa. Meu grito ficou contido na garganta, latejando, doendo, batendo forte _ como se o coração realmente pudesse me saltar à boca. Coração que eu já nem deveria ter, segundo ela. Já que tudo estava perdido em mim.
Mal sabia ela que havia um espelho em meu quarto, quando cheguei em casa. E que ele me salvou a vida.
Ainda havia em mim dois olhos. Dois olhos castanhos e lembranças. Lembranças coloridas. Havia também a música, que ouvi baixinho. Havia um pai, uma mãe e três irmãos em mim. Também encontrei lá quatro crianças lindas, que me sopraram a face, com uma ternura tão imensa que me fez sentir o beijo de Deus na primeira criatura.
Ainda havia em mim a coragem de chorar. Chorar tudo, recobrando a força, a vontade, o desejo, a fé. Quebrei meu silêncio, o jejum e todas as correntes que me travavam os pés.
Não, não é tarde. Não tenho mais vinte anos, não tenho mais a inocência, não tenho mais o vigor de antes. Tenho, no entanto, dignidade, herança boa. Tenho valentia de sangue sertanejo, tenho saudade, tenho lembranças e muita estrada atrás e à minha frente, sim.
Bendito espelho que me fez enxergar quem sou. Bendito amor que me tenho, que me fez e que me leva a querer continuar vivendo e apostando em mim.

Meninos pagãos 13:20


Histórias que a gente ouve na infância ficam. Não tem jeito. Principalmente se o narrador é dos bons, daqueles que inventam vozes, recheiam as falas com sonoplastia digna dos melhores filmes de suspense e gesticulam como se vivessem a cena.
Eu tive bons narradores, dos melhores mesmo, nos primeiros anos da minha vida. E eles sabiam que eram, mesmo não tendo plena consciência das técnicas usadas. Caprichavam, rebuscavam efeitos e nos impressionavam de verdade. Deles ficaram também as lendas, os cuidados, os medos.
Pois bem, sei que se quebrar o espelho do meu quarto não terei sete anos de azar. No entanto, torço para que não aconteça. Sei também que se tomar banho depois do almoço não vou entortar sem conserto, mas... Se fizer careta e o galo cantar, se passar embaixo de uma escada, se comer manga e tomar leite, se comer melancia depois das seis da tarde, se cruzar uma encruzilhada...
Tudo isso é coisa besta, história pra boi dormir, mas eu não vou teimar com quem já viveu mais do que eu. Não mesmo.
Então, uma das histórias que mais me meteram medo e que até hoje me rouba o sono só de lembrar é a dos meninos pagãos. Reza a lenda, lá nos confins de São José da Coroa Grande, que se uma criança morre pagã jamais deixa de assombrar a casa, até que se faça um batismo simbólico e a torne cristã.
Perto da minha casa havia enorme castanholeira, onde os meninos pagãos vinham chorar sempre que morria mais um na cidade. Sob essa árvore eram realizados os batismos.
A estranha cerimônia era bonita de se ver. Mulheres vestiam branco, misturavam candomblé com orações cristãs, dançavam, se banhavam com sal e flores e ofereciam suas preces pelos anjinhos.
Chegávamos a ouvir o choro _ que na verdade era uma cuíca qualquer tocada entre os atabaques e os gemidos das mulheres _ e todos os fios de cabelos se arrepiavam.
Não sei onde foram parar os meninos pagãos, que hoje não choram mais, já que a árvore foi cortada para dar lugar ao asfalto. Não sei onde estão aquelas mulheres, seus atabaques, orações e cuícas.
Sei apenas que as histórias, os costumes e força daquela gente ficaram em mim. Para sempre.