Um dedo de prosa
Germana Telles
Caranguejada | 00:24 |
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Sempre que tem chuva caindo, batendo na janela aqui em casa, penso naquele passeio que fizemos. Nada era igual às aventuras que inventávamos quando queríamos festa e a calmaria imperava, absoluta.
Pois naquele dia, a chuva de julho _ que sempre nos empurrava ao recolhimento forçado em casa, longe dos amigos, dos caminhos até a Mata do Cajueiro, dos araçás, pitangas e goiabas fresquinhas, tiradas do pé _ decidimos que a festa viria.
Arrumamos as mochilas, pegamos os samburás, preparamos as iscas e esperamos a chuva dar um pouco de trégua. Caindo fina, que mal dava para ser notada, ela nos deu a pista de que poderíamos sair sem causar problema em casa.
Nos juntamos, bando de crianças entre os dez e os quinze anos, e partimos felizes em direção à mata. No meio do caminho, decidimos que a mata era pouca aventura para um dia como aquele e resolvemos que o mangue era nosso ponto de chegada. Fomos, sem saber que em lugar estranho não se deve entrar sem licença.
Entramos no caminho de lama e já na primeira pisada perdemos as sandálias de borracha. Enrolamos os pés nos sacos de plástico que enrolavam as iscas e nos enfiamos entre árvores pontudas, com cuidado para não sermos alvos dos cascos de ostras pelos galhos e na lama. Às vezes o atoleiro era pouco, em outros momentos parecia que nos engoliria.
Sérgio, nosso amigo mais esperto, filho e neto de pescadores, jogava o braço inteiro nas tocas dos caranguejos e demorava ali. Mexia, puxava e voltava, até nos trazer os bichos. Patonas abertas, olhos pulados, chiando e espumando de raiva por terem sido arrancados do seu canto. Dali para o samburá e do samburá para o caldeirão.
A farra estava boa, até que os trovões começaram a trazer os doces bichinhos à superfície. Caranguejo sai da toca quando o barulho incomoda. Todo praieiro sabe disso. Nós descobrimos ali, nos vendo cercados de bichos brabos por todos os lados, sem poder correr _ com a chuva deixando nossa visão bem turva _ desesperados.
Quanto mais queríamos correr, mais afundávamos. Até que alguém lembrou dos galhos finos das árvores, onde eles também subiam, mas seria mais fácil sair pulando entre os galhos do que tentar andar na lama grudenta, em meio às patas afiadas.
Depois de muitos gritos, choro e medo, conseguimos vencer o mangue. Ao pisar na areia firme, nem quisemos olhar para trás. Corremos, nos limpando da lama escura na chuva, encharcados. Antes de chegarmos em casa, a chuva deu nova trégua e levou nosso medo embora. Começamos a lembrar do que aconteceu e as gargalhadas vieram, com resquícios de aflição.
Nos samburás, Sérgio _ enquanto nos borrávamos _ ia colhendo a caranguejada doida. Nossa festa estava garantida à noite. Fizemos caranguejo e pirão e devoramos os bichos com vontade, afinal, tudo sempre terminava bem.
Sempre que tem chuva caindo, batendo na janela aqui em casa, tento lembrar do passeio e desse aprendizado. É preciso cautela para pisar em terreno estranho e, se você souber tirar proveito das adversidades, tudo há de terminar bem.
Retrato de amigo depois dos 30 | 00:20 |
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É que nada ou quase nada sabíamos da vida e assim usufruíamos do agridoce sumo, com um punhado de sal nas mãos. Por isso, não vimos nossa história ir tecendo o cenário, mudando o figurino, a mobília, os panos de fundo, a maquiagem que refaz nossos rostos, dia após dia.
Nossos passos tinham o caminho gravado na sola dos pés. Íamos, com o mapa na palma das mãos, com a certeza de semideuses nos olhos, com a respiração de quem domina o ar rarefeito, os sete mares e a força da gravidade no mais baixo abismo. Éramos os donos da verdade mais que relativa, sem qualquer ponderação, longe de qualquer teoria bem estabelecida. O absoluto havia sido extinto de nossas convicções mal-balanceadas.
Éramos jovens. Em meio aos quase vinte, aos vinte, aos vinte e poucos, aos quase trinta. E tudo era eterno, assim. Até que um dia, a idade nos tomou conta, nos pegou de assalto. Vimos, em meio a quedas _ ausências repentinas e seculares de pai e mãe, irmãos, companheiros de jornadas, falta de dinheiro, segurança e alegrias _ que nossos grãos de areia começavam a ficar pela metade no relógio.
Onde antes tudo era belo, aos poucos as rugas foram ganhando terreno. As mãos viram brotar novos montes, novos marcos, novas trilhas na palma e nos dedos. O sorriso ficou mais sereno, meia-boca, mentindo tranqüilidade em meio à desconfiança absurda de tudo e de todos.
Vimos longe os nossos passos, o nosso chão, a casa onde nascemos, a escola, os parquinhos, as festas, os vizinhos, os primos, os avós, os natais, as páscoas, os almoços de domingo, as corridas malucas de bicicleta, os bailinhos dos sábados. Já não havia as esperas das sextas-feiras nas paradas de ônibus, quando os que faziam faculdade davam o ar da graça e refaziam as brincadeiras de sempre.
Quem havia ficado, sem se aventurar na boa-esperança, celebrava com o mesmo ar de criança. Quem havia partido e encontrado todas as desilusões e as brechas apertadas das soluções do mundo, chegava como quem renascia. Estar ali era como reestréia no ventre da mãe. Aconchego, coisa boa sem nome, euforia, segurança, paz, tudo junto no meio do estômago, num rebuliço indefinido e eterno. Quinze cavaleiros do apocalipse à espera do futuro. Assim éramos nós.
A tecnologia me faz espectadora das vidas que o futuro fez. Vejo pequenos fios brancos espalhados nas cabeleiras castanhas. Traços quase imperceptíveis contornando os olhos, bocas, nariz. Sulcos profundos nas retinas, no peito, nas lembranças.
Saudade, fazendo todo mundo pedir trégua a Deus. Porque a vida é breve demais para tanto amor.
Permanecer | 00:16 |
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Com paciência e desvelo me ensinou a andar. Com carinho, me deixava brincar com seus soldados de borracha _ mesmo quando eu desmontava tudo _ e contava histórias antes de me fazer adormecer. Um dia ele me falou das estrelas. “A luz que elas têm é tão forte que mesmo depois que elas morrem, permanecem acesas, por milhares de anos. Algumas dessas que vemos lá em cima nem estão mais ali”.
Achei aquilo tão forte, tão bonito. Morrer e permanecer. Nunca apagar. Pensei em como seria bom se isso fosse possível para a humanidade. Nunca deixar de iluminar o mundo. Explodir e espalhar luminosidade, brilho. Guardei aquilo comigo.
Num dia ensolarado de abril ele saiu para mais uma caminhada com um amigo. Nunca mais voltou para casa. Minha mãe havia preparado seu prato preferido: polvo ao molho de coco. Ficou ali no fogão, por horas, até que alguém se compadeceu e jogou no lixo. Na travessia do braço de mar que ligava nossa praia a um vilarejo, ele foi levado para o fundo do rio. O amigo tentou lhe trazer de volta. Em vão. A correnteza foi mais forte. Essa é a versão que temos.
A cidade inteira se mobilizou. Pescadores jogaram suas jangadas nas águas, benzedeiros pediram aos seus mestres que mostrassem o caminho. Homens, mulheres e meninos fizeram barcos de isopor com velas para iluminar a noite e trazê-lo de volta. Nada adiantou. Foram dois dias de espera, angústia e muito medo que não desse mais tempo, que não houvesse jeito algum.
Não houve. Os bombeiros o encontraram, numa praia próxima, e nos trouxeram. Aquele moço calmo, alegre, de coração leve, partiu sem aviso prévio. Nos deixou sem qualquer motivo.
Demorei muito tempo tentando aceitar. Muito tempo mesmo. Penso que entendi, assimilei, fui forçada a conviver com isso, mas não tenho certeza da minha aceitação. Era meu único irmão, meu companheiro, confidente, meu poetinha preferido. E tinha apenas vinte anos.
Nos juntamos bem mais depois de sua partida. Nossa família grudou, virou mesmo um ninho mais fechadinho. Mas sempre esperei que ele chegasse, depois dos portões fechados em casa. Cheguei a ouvir seus passos na cozinha, abrindo a geladeira, pegando a metade do refrigerante que eu dividia, comendo o doce predileto.
Esperei por muito tempo vê-lo sorrir ao pé da minha cama, me acordando e dizendo que foi um sonho ruim e que ele jamais saiu de casa assim, tão cedo. Hoje eu sei que ele está iluminando outros mundos. Creio fervorosamente na vida e na luz que não cessa. Meu menino virou estrela, explodiu de tanta coisa boa que havia em si. Vou soprar minha cantilena por todos os meus dias, em seu nome. Para que a chama jamais apague e nosso amor, talvez um dia, vire uma estrela. Permaneça.
De amor e simplicidade | 00:13 |
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À noite a rotina era a mesma: cadeiras nas calçadas, vizinhos e histórias repartidas, como quem divide o pão. Cansados, os moradores se recolhiam bem antes da noite ensaiar a madrugada. Tudo brindado pela trilha do mar, suave, sendo abrandado pelo vento manso. Foi nesse lugar que ela encontrou o amor da sua vida, o homem de sua história. Caixeiro viajante _ e dos bons, como fazia questão de frisar _ ele bateu os olhos e a quis. Ela rejeitou a idéia de se render ao vocabulário farto daquele estranho, que conhecia o mundo inteiro, mas nada poderia saber a seu respeito.
No entanto, aqueles olhos, aquelas maneiras de quem pega a dor com as unhas e esmaga, lhe arrastaram. Seria dele. Entre idas e vindas, resolveram casar no mês de agosto. Vento forte, chuva sem tréguas. Despesas dobradas, para montar palhoça que guardasse os convidados do temporal.
Na manhã da festa o céu se curvou ao amor dos dois. Sol, calmaria, caminhos abertos aos noivos. A casa se abriu às 8h em ponto. Todos os moradores deveriam saber: ela sairia da casa dos pais e seria entregue ao marido, a quem deveria seguir pelo resto de seus dias. As moças das redondezas, vestidas de branco, a esperavam com flores de laranjeira nas mãos.
O caminho havia sido bordado com rosas e folhagens, num tapete primoroso por onde seus pés descalços a levariam até a capela.
Lá, um jovem caixeiro tremia, da cabeça aos pés. Suava, dobrava e desprendia a gravata, secava o rosto, contava o tempo _ que insistia em lhe fazer desfeita e demorava a passar, de propósito. Ao longe, viu surgir o cortejo. A procissão seguia, silenciosa, pela rua. De braços dados com o pai, ela tentava acelerar os passos. Tinha pressa de começar aquela vida, que agora, sim, seria sua. Nasceria a partir de então.
Casaram. Tiveram oito filhos e viveram por 20 anos juntos. O caixeiro se foi, num mal súbito, num dia de agosto. Desde então, seus filhos e netos passaram a ser sua vida. E a cidade inteira começou a lhe pegar de empréstimo os sentimentos mais preciosos e as melhores histórias. Jamais se rendeu à tristeza. Tinha a gargalhada mais farta que já ouvi.
Já a conheci como “Vó Benedita”. Fui uma das que lhe pegou o amor, os sonhos e os guardou consigo. Passava horas e horas conversando com ela, em meus dias de férias, em muitos janeiros. Nunca esqueci a história do caixeiro.
Passei por sua casa, há poucos dias, e quase bato à porta. Ela também já partiu. A cadeira branca, de palhinha, continua no terraço, junto ao cesto com linhas e agulhas de tricô. Na parede, um enorme Coração de Jesus. Deu saudade.
Revivi, por instantes, tudo que me contou um dia. Busquei o ar daquela casa, puxei bem forte as lembranças. Em silêncio, pedi as bênçãos daquela que um dia me ensinou como é simples ser feliz.
Humanidade Catarina | 00:10 |
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Quando cheguei aqui, a primeira vez, eu vi que algo muito forte esperava por mim. Era caso de amor. Vi um lugar diferente de tudo que já havia visto na vida. Gente que falava com um charme, uma cadência, um dobrado... Gente e terra que me encantaram demais. Eu estava em Santa Catarina. Terra com nome de santa. Terra abençoada que me fez render todos as honras e me apaixonou de modo arrebatador.
Vinda de um lugar mágico, iluminado, quente, me via enfeitiçada por algo novo, límpido. Por um lugar com cara de novo mundo. Era uma coisa estranha me tomando as entranhas, me pedindo para ficar. Não sei mesmo o que mais me prendeu aqui. Não sei. Eu busco e não consigo atinar mesmo ao que me prendeu.
Lembro de uma procissão de São José, lá na terra onde nasci e de onde vim. Lembro de pedir pela saúde de minha mãe, abraçada a foto dela, e de rezar para voltar a Santa Catarina. Porque eu queria mais daquela sensação de porto seguro, de fertilidade, de hospitalidade, de retidão, que vem do ventre dos catarinas.
Só sabe o que é Santa Catarina quem está aqui, quem vive, quem partilha, quem descobre essa terra de imigrantes fortes, desbravadores, determinados, firmes, teimosos, corretos, honestos.
Meu grande orgulho é ter sido aceita, recebida com festa, com amor, com afeto de família. Eu amo esse solo, esses amigos feitos, esses dias vividos e conquistados. Catarinense tem um brio tão desconcertante que modifica o modo de qualquer pessoa ver o mundo. O ritmo é oposto a todos os que já havia experimentado. E eu quis esse baile. Eu quero viver com essa gente que me desperta admiração a cada dia.
Nas últimas semanas eu fui, nós fomos pegos de surpresa. A terra da beleza e do trabalho, dos homens fortes, das mulheres quase de Atenas, se viu em meio a um mar grosso de barro vermelho. A chuva derrubou os morros e as fortalezas do peito dessas pessoas vistas por mim como invencíveis, inquebrantáveis. Meu peito foi ficando apertado, miúdo, triste.
O pior era sentir que as estradas bloqueavam o acesso, as possibilidades. Foi terrível ver aquelas pessoas gigantes com os olhos marejados, tomados de dor e de medo. Foi indescritível temer por gente que eu nem conhecia, mas que já é tão minha.
Tudo aqui inspira cuidado. No entanto, mais uma vez, Santa Catarina me ensina que esse solo é mesmo diferente de todos os caminhos por onde passei. Em meio ao tormento, o catarinense esboça sorrisos. No meio do vendaval, dos saques, do desespero, famílias antes estruturadas para receber cem gerações à frente, vencem rugas, idade, cansaço, desesperança e fazem todo o caminho feito pelos ancestrais. É hora de refazer, então, mãos à obra, sem tempo para lamentações.
Esse é o segredo Catarina: a força, a vontade, o destemor, a valentia, a dignidade, a hombridade, a valentia. Eu quero estar aqui. Por quantas tempestades o planeta resolver mandar, se ainda tiver a impiedade de mandar. Porque aqui, mais do que em qualquer outro lugar no mundo, eu aprendo a viver e a ser um ser humano de verdade.
O piano | 00:08 |
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Então, num dia de Natal ganhamos um piano. Não era de cauda, nem enorme como os dedilhados pelos grandes músicos, mas era nosso. E aquilo foi um festerê em casa. Três Marias disputando um lugar no banquinho, tentando tirar alguma coisa parecida com música daquelas teclas mágicas e, até então, misteriosas. Até que um dia eu desisti de tentar adivinhar como fazia aquilo e pedi para aprender de verdade.
Fui matriculada na melhor escola da cidade e aprenderia numa turma cheia de menininhas da mesma idade. Meus pés mal tocavam os pedais e as mãos _ que até hoje são minúsculas _ passavam trabalho para alcançar as notas mais longas. No entanto, eu havia cismado que seria pianista e persistiria no intento, mesmo que para isso meu mindinho fosse sacrificado.
Saía da escola, almoçava, e três vezes por semana minhas tardes eram da música. Aprendi rápido e impressionei Norma, a professora mais paciente e dedicada que já conheci. Em pouco tempo eu já tocava bem. Fui selecionada para a audição da escola. Tocaríamos numa rádio local e seríamos ouvidas por toda a cidade. Alvoroço em casa. Ensaios dobrados, orgulho enchendo peito de pai e mãe. Roupa nova, corte de cabelo, expectativa. Eu nem sabia porque tanta confusão, mas desconfiava que eu tinha conseguido algo grande.
Minha avó mandou presente, tias pediam fotografias e a escola convidou todo mundo para a festa. Tudo correria como o previsto e o sonhado, não fosse uma sardentinha ruiva, de olhos enormes e azuis, que atravessou o meu caminho.
Entre as arrumações feitas em mim, que me sentia praticamente um mamulengo nas mãos dos adultos, a idéia aprovada por Norma e por minha mãe para que meus cabelos _ mais finos do que seda na época (antes de dar o curto-circuito na adolescência), não caíssem sobre os olhos e atrapalhassem minha concentração _ foi colocar uma tiara na cabeça, empurrando a franja para trás. Pois bem, elas não contavam com minhas benditas orelhas de abano. No meio do caminho havia as orelhas. Elas destruíram o que poderia ser uma bem sucedida carreira de pianista.
A sardenta foi o instrumento do infortúnio. Ela, que havia ficado de fora da audição e não conseguia passar do “Pastorzinho (dó-ré-mi-fá)”, resolveu me tirar da jogada com a maldade peculiar de algumas crianças e me fez perceber a semelhança entre minha pobre cabeça e a do elefante Dumbo.
Foi um tal de Dumbo pra lá e Dumbo pra cá. Quando percebi, eu era o alvo dos risinhos maquiavélicos e da gozação ensurdecedora dos coleguinhas ingênuos e inocentes da escola.
Pronto, deu-se o drama. Bati o pé, empinei um bico quilométrico, cruzei os braços e endureci. Mula empacada, cara de bicho brabo, não mexia nem os olhos. As lágrimas caiam como se fossem lavas vulcânicas pelo rosto e eu não dava um gemido sequer.
Mandaram Kekéia (minha irmã que sempre conseguiu tudo de mim) me convencer. “Não vou”. Veio meu pai. “Não vou”. E o meu tempo de apresentação chegando. Não, vou, não vou, não vou. Arranquei a desgraçada da tiara da cabeça, puxei os cabelos pra frente, limpei o nariz encharcado na gola do vestido e corri para o carro.
Nunca mais voltei às lições. Toquei por alguns anos o que havia aprendido com Norma, com uma ponta de arrependimento, mas com o orgulho ferido demais para voltar atrás. Aos poucos, fui me afeiçoando ao violão. Aos doze anos ganhei o primeiro de presente e nunca mais soube o que era viver sem ter o bom e velho companheiro por perto. As orelhas de abano? São boas amigas, que me fazem ouvir melhor a música do mundo.
Lição de amigo | 00:06 |
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Ele levava jeito pra um monte de coisas. Corria de um lado para o outro, sempre apressado para construir sua vida, dando a impressão de que o futuro era mesmo algo pra ontem e grandioso.
Entre suas múltiplas funções, foi barbeiro, carregador de caminhão, frentista, lavador de carros, entregador de pizza, leiteiro e até arriscou jogar futebol, mas não deu certo. Quando o conheci ele ajudava o dono da mercearia, na esquina da casa dos meus avós. Toda tarde eu ia lá, pedia o mesmo refrigerante, o mesmo bolo com calda de chocolate. E ele sempre com aquele sorriso, enorme.
No dia que aprendi a andar de bicicleta, levei o maior tombo da história e quase fiquei sem dentes, foi ele que pulou o balcão e veio me socorrer. Nesse dia não precisei pagar pelo bolo nem pelo refrigerante. Tudo por conta da casa e do coração generoso daquele moço guerreiro de coração generoso.
No último Natal, fui levar minhas sobrinhas para o tradicional abraço no Papai Noel, lá na casinha montada pra ele, no meio da pracinha do lugar de minha infância. A fila enorme não me fez desistir e, entre um papo aqui e ali com velhos conhecidos, logo chegou a nossa vez.
Fotos, beijos, pedidos e aquele olhar me chamou a atenção. Eu conhecia aquele homem, por trás daquela barba de algodão e de toda aquela roupa e enchimentos. Mãozinhas cheias de pirulitos, rostinhos rosados com felicidade estampada, era a hora da pizza, do sorvete e de tudo que faz parte dos sonhos delas.
Enquanto elas lanchavam, eu olhava de longe pro velhinho. De repente, me veio a lembrança. Era ele, o meu velho amigo Moacir. O Papai Noel da pracinha era o moço das minhas lembranças.
Voltei à casinha e conversamos longamente, vendo as crianças brincarem no parque. Ele já era avô, tinha uma lista enorme de nomes dos netos, comprou uma casa à beira-mar _ como havia planejado _ e agora não corria mais. Estava aposentado, só cuidando do que plantou um dia.
Rimos muito lembrando a espoleta que fui, contei como estava longe agora e quanta saudade sentia de tudo que não volta mais. “Não sinta saudade, menina. O tempo não anda pra trás. O longe não significa o distante”. Fiquei batucando aquilo na cabeça: o longe não é o distante, o longe não é o distante.
Este ano, não consegui chegar a tempo no guichê para comprar a passagem que me levaria até minhas meninas e ao meu lugar. Desde que nasci, é o primeiro Natal fora de casa. E isso dói. Muito. Mas hoje eu acordei pensando no Moacir, que partiu no início do ano para um lugar bem longe. E me dei conta de que estarei lá sim, seja qual for o chão que eu pise. Porque um velho amigo me ensinou que não há distância quando se tem amor.