Um dedo de prosa

Germana Telles

O piano 00:08

Então, num dia de Natal ganhamos um piano. Não era de cauda, nem enorme como os dedilhados pelos grandes músicos, mas era nosso. E aquilo foi um festerê em casa. Três Marias disputando um lugar no banquinho, tentando tirar alguma coisa parecida com música daquelas teclas mágicas e, até então, misteriosas. Até que um dia eu desisti de tentar adivinhar como fazia aquilo e pedi para aprender de verdade.


Fui matriculada na melhor escola da cidade e aprenderia numa turma cheia de menininhas da mesma idade. Meus pés mal tocavam os pedais e as mãos _ que até hoje são minúsculas _ passavam trabalho para alcançar as notas mais longas. No entanto, eu havia cismado que seria pianista e persistiria no intento, mesmo que para isso meu mindinho fosse sacrificado.


Saía da escola, almoçava, e três vezes por semana minhas tardes eram da música. Aprendi rápido e impressionei Norma, a professora mais paciente e dedicada que já conheci. Em pouco tempo eu já tocava bem. Fui selecionada para a audição da escola. Tocaríamos numa rádio local e seríamos ouvidas por toda a cidade. Alvoroço em casa. Ensaios dobrados, orgulho enchendo peito de pai e mãe. Roupa nova, corte de cabelo, expectativa. Eu nem sabia porque tanta confusão, mas desconfiava que eu tinha conseguido algo grande.


Minha avó mandou presente, tias pediam fotografias e a escola convidou todo mundo para a festa. Tudo correria como o previsto e o sonhado, não fosse uma sardentinha ruiva, de olhos enormes e azuis, que atravessou o meu caminho.


Entre as arrumações feitas em mim, que me sentia praticamente um mamulengo nas mãos dos adultos, a idéia aprovada por Norma e por minha mãe para que meus cabelos _ mais finos do que seda na época (antes de dar o curto-circuito na adolescência), não caíssem sobre os olhos e atrapalhassem minha concentração _ foi colocar uma tiara na cabeça, empurrando a franja para trás. Pois bem, elas não contavam com minhas benditas orelhas de abano. No meio do caminho havia as orelhas. Elas destruíram o que poderia ser uma bem sucedida carreira de pianista.


A sardenta foi o instrumento do infortúnio. Ela, que havia ficado de fora da audição e não conseguia passar do “Pastorzinho (dó-ré-mi-fá)”, resolveu me tirar da jogada com a maldade peculiar de algumas crianças e me fez perceber a semelhança entre minha pobre cabeça e a do elefante Dumbo.


Foi um tal de Dumbo pra lá e Dumbo pra cá. Quando percebi, eu era o alvo dos risinhos maquiavélicos e da gozação ensurdecedora dos coleguinhas ingênuos e inocentes da escola.
 

Pronto, deu-se o drama. Bati o pé, empinei um bico quilométrico, cruzei os braços e endureci. Mula empacada, cara de bicho brabo, não mexia nem os olhos. As lágrimas caiam como se fossem lavas vulcânicas pelo rosto e eu não dava um gemido sequer.

Mandaram Kekéia (minha irmã que sempre conseguiu tudo de mim) me convencer. “Não vou”. Veio meu pai. “Não vou”. E o meu tempo de apresentação chegando. Não, vou, não vou, não vou. Arranquei a desgraçada da tiara da cabeça, puxei os cabelos pra frente, limpei o nariz encharcado na gola do vestido e corri para o carro.


Nunca mais voltei às lições. Toquei por alguns anos o que havia aprendido com Norma, com uma ponta de arrependimento, mas com o orgulho ferido demais para voltar atrás. Aos poucos, fui me afeiçoando ao violão. Aos doze anos ganhei o primeiro de presente e nunca mais soube o que era viver sem ter o bom e velho companheiro por perto. As orelhas de abano? São boas amigas, que me fazem ouvir melhor a música do mundo.

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