Um dedo de prosa

Germana Telles

O jubilado 16:02

O cheiro do café enchia o ar de bom dia. Aos poucos a cidade amanheceu. Fartura de expectativas e paz. O ruído no portão foi se transformando em algazarra quando elas entraram esbaforidas, aceleradas, falando ao mesmo tempo. Novidades à vista, pensamos.
Na cozinha o fuzuê estava armado. Minha mãe tentava acalmar as falastronas, que zumbiam, gesticulavam, despejando nomes conhecidos, entre goles fartos de café e enormes pedaços de bolo. "Jubilado, o menino, comadre! Jubilado", anunciava Sônia. "Dizem que a festa vai ser grande dessa vez. Já mandaram benzer a capela nova, tem banda de música ensaiando no salão paroquial e dizem que vem gente de tudo o que é canto para as homenagens", soltou Luzia.
Nos entreolhamos - eu e meus irmãos - e tentamos entender o porquê de tanta confusão. Afinal, quem era o jubilado, santo Deus? E por que festa para uma coisa assim? "O menino fez bonito", refletiam, reticentes. Batata! Elas não sabiam que o "feito" do menino era na verdade uma tragédia. Nos divertimos com aquilo, já no primeiro instante em que entendemos o engano. Dona Nadir atravessou o caminho entre o terraço e a cozinha feito um raio. O pano de prato gasto, amarelado, jogado nos ombros, indicava a sofreguidão dos curiosos. Lenço retocado de minuto em minuto. Corpo estourando em bolhas. Era conhecida a alergia da bodegueira, madrinha de todos os bêbados do vilarejo. O balcão de Dona Nadir era ponto de encontro de todos eles, dia e noite. Tudo que acontecia nos arredores chegava primeiro por lá. Era a imprensa local, aquele balcão tosco.
Dessa vez ela soube com atraso e a urticária deu sinal de vida. "Mas já avisaram ao prefeito?". Sim, sim, o prefeito já havia sido avisado, as diretoras dos grupos escolares, as benzedeiras, cozinheiras, fazendeiros, todo mundo sabia do grande triunfo de Vandelson na Capital. Jubilado. Minha mãe tentava falar, mas não conseguia. "Não tem que fazer festa, gente. O menino foi jubilado", tentou. Os olhares praticamente a fuzilaram. Podíamos quase ouvir os pensamentos das futriqueiras. "Ela está é com inveja porque não foi filho dela". Saíram em cortejo silencioso, dizendo voltar mais tarde.
Corremos pra calçada. Sentada no muro de casa, vi passar meninos de pernas finas empurrando carros-de-mão com gelo e pó-de-serra, cabritos com pés amarrados (prontos para o abate)e engradados de cerveja. Todo mundo queria dar sua contribuição para o herói da cidade. À noite a festa foi inesquecível. Discursos, foguetório, forró, comida e bebida até não se querer mais. No palanque, Vandelson tremia - mudava de cor, sorria amarelo, nos olhava sem jeito. Ele sabia que nós sabíamos. A diversão foi maior do que pensávamos. Jubilado.
Jamais vou esquecer o dia seguinte. Faixas no chão, restos de festa. Na parada do ônibus, antes de ir para a escola, encontrei o homenageado, triste, com mochila do lado. Depois da festa, foi forçado a não iludir mais os pais. Expulso de casa. Vergonha.
Durou pouco tempo a mágoa. O jubilado hoje é respeitado pai de família, longe da cidadezinha que lhe fez herói. A história nunca foi esquecida por lá. Dizem que pensaram até em erguer estátua. Sorte que alguém achou um dicionário a tempo. O dono de todas as pompas e glórias acabou virando a piada do século.

A companheira 15:53

Era a minha apresentação no teatrinho da escola. Estávamos vestidos com as túnicas azuis (horrorosas, por sinal) da cor do céu, com uma corda grossa amarrada à cintura, imitando os apóstolos, em pleno altar da capela do colégio. Minha única fala era anunciar que o Salvador havia nascido, e só. O resto era acompanhar as falas em que todos faziam aclamações. Tudo muito fácil, não tivesse a personagem principal apenas seis anos de idade.
Aquela minha estreia poderia ter sido apenas mais um trabalho de escola, mas foi bem mais, porque naquele dia descobri que havia alguém do meu lado, sempre, com uma força descomunal me empurrando para tudo que era bom nessa vida.
Assim que me lancei à frente e soltei a fala, a vi chegar. Trazia uma sacola de feira pendurada num dos braços e o rosto corado. Não sei se de emoção ou pelo sol de quarenta graus lá fora. Não sei mesmo se o sol estava lá fora ou se ela era, inteira, o próprio sol.
Fomos cúmplices, eu e ela, a vida inteira. Dela eu herdei os altos e baixos. Em alguns momentos sou um mar de águas calmas e bastam alguns segundos para me transformar num rio pronto para despencar corredeira abaixo. Herdei também o horror pelas injustiças, pela deslealdade, pelo egoísmo, pela ganância. Levo comigo o apego à família, às raízes, a vontade de festa em cada coisa do dia. Levo comigo a fúria destemperada ao ver um amigo ou irmão sendo desmerecido ou pisado. Levo comigo as canções de ninar, o colo macio, o abraço silencioso, as histórias antes de dormir.
Levo comigo as broncas, o leite quente nas noites com febre, o sorriso iluminado, as danças em nossa sala, o amor maior.
Já quis muitas coisas nessa vida, entre os seis e os trinta e seis anos de estrada. Já quis cantar, ela me deu violão e voz. Quis ganhar o mundo, ela me abriu as estradas, me entregando a todos os anjos e santos quando partia. Quis voltar para casa, ela me acolheu sem porquês nem senões. Já quis muito, sonhei alto. Mas nada me fazia mais contente do que chegar em casa e encontrá-la. Do que ter a quem pedir a bênção, do que saber que em algum lugar eu tinha um pedaço de mundo que me acolheria. Eu tinha para onde voltar.
Hoje, trocaria todos os anos da minha vida _ os que já tive e os que, porventura, terei. Trocaria todas as festas, todos os encontros, todas as estradas, tudo que fiz, pelo direito de tê-la de volta. Sei que ainda há muito a buscar, que não há por que parar quando o caminho ainda aponta para muito longe além do que os olhos alcançam. Mas ela fazia a diferença.
Ontem troquei ideias com alguém bem próximo e vimos que pensamos igual. Não há coisa melhor no mundo que mãe. Sem ela, parece que todo o nosso corpo deu um nó. Os pés travam, a voz falta, a infância volta a bater na porta e todos os bichos-papões saem de suas tocas.
Não há um dia em que eu não pense em nossa amizade. Mesmo que eu viva até esquecer de mim, mesmo que eu consiga tudo que eu pensei, não a esquecerei, nem por um segundo sequer.

Sobre a doçura da vida 15:44

Voltávamos da escola, sempre falantes, mais juntos do que em qualquer outro momento _ afinal, aquele era o nosso instante, quando éramos só nós dois, dividindo as primeiras horas dos nossos dias.
Os mais velhos seguiam à frente, porque andar de mãos dadas com o pai era coisa para quem ainda levava lancheira e usava uniforme infantil demais. Eu adorava ser a caçula e ter o privilégio que eles desperdiçavam. Tolos, que não aproveitavam os conselhos, que não desfrutavam dos sorrisos silenciosos (fazendo o corpo dançar, como se a alma se divertisse e mandasse lhe acompanhar na festa).
Quando as minhas frases soltas jogavam mais ingenuidade do que o costume, então eram gargalhadas fortes que enchiam o ar. Eles, os mais velhos, fingiam não se importar, mas então eu gargalhava junto, balançava o corpo junto, provocava com a nossa farra.
Num daqueles dias, porém, abusei da paciência do meu velho, quase ganho umas palmadas, mas entendi o significado da doçura, primã-irmã do amor de pai. Passamos por uma vitrine tentadora, loja nova no caminho, com filhotes de cães pulando para todos os lados. Latidos finos, patas minúsculas e arredondadas, pelos fofinhos, olhos espertos pedindo colo. “Quero um, compra?”, o pedido. “Não”, a sentença curta e definitiva. “Quero um, quero um, quero um” foi a ladainha pelo longo trajeto, uma quadra após a outra. Atrasei os passos, empaquei, ameacei greve de silêncio, reclamei da vida. E ele, firme. Até que _ com aquela compaixão que só os pais sentem frente ao choro de um filho _ ele sugeriu: “Que tal um pão doce?”.
Amuei e foi difícil desfazer a tromba. Onde já se viu oferecer um pão doce em troca daquele cachorrinho perfeito? Havia perdido a batalha. Fui rendida e cedi aos encantos dos pães cheios de coco açucarado. Ele parou no balcão, pediu os pães e ficou ali, pacientemente, esperando que desfrutássemos do lanche em horário indevido e que certamente lhe renderia reclamações em casa.
Entre uma mordida e outra, seus olhos me acertaram. Toda a malcriação já havia sumido, da minha parte. Todo o amor do mundo permanecia com ele, feliz diante das crias. Terminado o lanche, seguimos adiante, de volta para casa. Colamos novamente nossas mãos e retomamos os sorrisos de onde paramos.
Entre tantas outras coisas boas que meu pai me deixou, a doçura dos seus gestos é meta que tento alcançar diariamente. Mas, confesso: estou longe de chegar aos pés de tamanha grandeza.

Apaguem as luzes 15:40

Chegando do trabalho, durante a semana, fui surpreendida com o apartamento das minhas vizinhas às escuras. Somos sempre levados a buscar respeitar os que dividem conosco o mesmo espaço no condomínio, mas isso fica complicado quando os apartamentos são praticamente colados. Da janela da minha cozinha _ onde me debruço por alguns bons minutos, assim que chego em casa, para fazer o jantar _, não há como não olhar para a casa alheia. Bem que tento, mas não dá mesmo. A não ser que eu vende meus olhos, torça o pescoço para as costas ou não tire os olhos da pia, sem elevar a cabeça um só instante.
Pois bem, as moças estavam sem luz. Pagavam por uma falha de ex-moradores, que desocuparam o imóvel sem pagar as contas. Cortaram. Imaginei como seria ruim, estar ali, sem o barulho da televisão, a luminosidade da luz elétrica fazendo a noite virar dia, a possibilidade de um belo banho quente... Até que, entre as velas acesas sobre a mesa, onde elas conversavam, sorriam e bebericavam alguma coisa, percebi o quanto estavam bem, o quanto aquele apagão havia aproximado as duas.
Como disse, não quero ficar olhando a vida alheia, não é mesmo do meu feitio, mas não pude evitar. Sempre que cheguei, nos dias em que a luz imperava naquela casa, o local parecia vazio. Com luz, mas vazio. Não via ninguém passar, não ouvia vozes, mas a televisão sempre estava ligada.
Penso que, para não perder nenhum lance das novelas, elas preferiam ficar quietas, sem muita conversa, sem tempo para perder (uma com a outra), sem trocas.
Lembrei dos velhos dias de apagão, quando faltar energia era algo comum nos vilarejos da infância, principalmente no verão, quando a praia se enchia de turistas. A sobrecarga sempre nos deixava na mão.
Numa das noites mais esperadas do ano, perto do Natal, quando toda a vizinhança havia combinado fazer quitutes e se reunir para ver o show de Roberto Carlos, a distribuidora não suportou e a luz foi embora bem na hora marcada. Lembro que praguejamos por alguns minutos, esperamos que a sorte batesse à porta e nos trouxesse a luz de volta, até que alguém pegou um violão.
Fomos todos para o terraço, onde mangueiras, cajueiros e coqueiros nos protegiam e sopravam a brisa que vinha da praia. Jogamos esteiras no chão, forramos toalhas e trouxemos os quitutes. Deitei na esteira e ganhei de presente todas as luzes do universo, ali, só para mim. Não poderia haver espetáculo maior do que aquele, nenhum show chegaria aos pés.
Homens, mulheres, crianças, todos cantando juntos canções nossas, dos nossos pais, dos nossos avós, e as velhas canções de Roberto. Comemos, rimos, e de repente já nem lembrávamos que a luz havia ido embora. Estávamos completamente iluminados.
Vendo as luzes apagadas na casa das minhas vizinhas tive a vontade de também apagar as minhas, pegar o violão e acender minha alegria, com o violão em punho. De vez em quando, tenho para mim, é bom apagar as luzes.

Mágoa de cabocla 15:19

Mágoa é veneno quente que entorpece e mata devagar. Mágoa é pior que cigarro, cachaça, mais letal que qualquer droga. Mágoa anestesia os sentidos, faz tremer as pernas, tira o ar, rouba a razão, cobre a gente de frio. Mágoa é coisa ruim, tipo mau-olhado: põe nódoa no viço, deixa os olhos fundos, corrói o corpo e a alma, em silêncio.
Um dos amigos do meu pai disse uma vez, naquelas conversas das sextas-feiras na varanda: “Prefiro uma dor de dente a sentir angústia. Não há nada pior do que levar nas costas uma mágoa mal curada, uma bordoada”.
Estava certo o amigo do meu pai. A dor de sentir-se traído, incompreendido, desrespeitado, ultrajado, é nó cego, como dizem os matutos. Não há ser humano que suporte calado. Não há quem diga que não está doendo, não há disfarce. E a tal da mágoa é coisa ruim de curar. Até se encontra o perdão, numa esquina qualquer. Contudo, perdoar não é esquecer. E isso é bem coisa de mágoa entranhada.
A mágoa bate na porta quando você pensa que já vai dormir em paz. Martela centenas de vezes as palavras que lhe cuspiram na face. Repete, feito disco arranhado, a romaria desafinada, badala aos quatro ventos a dor que lhe faz chorar. Faz questão de lembrar o que você pagaria qualquer preço para esquecer. Basta ensaiar um “não lembro mais” e a bruxa da mágoa diz “estou aqui”.
Há coisas que não se deve dizer a quem se quer bem. Porque isso quebra o elo sagrado que une os amigos, os irmãos, os amores. Há coisas que não se deve dizer a ninguém, porque o vento pode mudar a direção, a bola pode quicar e o tiro sair pela culatra.
Há sentenças que podem e devem ser ditas, mas há a escolha pelo caminho suave ou pela agressividade. E tem mais: a verdade é relativa e não foi comprada por ninguém. Portanto, cada um com a sua verdade, com a sua medida do que é certo e errado, sem julgar ou condenar ninguém por pensamentos opostos. Só quando a minha medida ultrapassar o limite do meu vizinho. Enquanto isso não acontece, cada um na sua e todo mundo junto. Isso é harmonia. É assim que a banda toca.
Essa história de que “a verdade tem que ser dita” dá nos nervos e só causa estragos. Tem gente que perde a mão e descamba a plantar mágoa quando cai no erro de que “a verdade tem que ser dita, a verdade tem que ser dita”. Cada um com sua verdade, cada um com suas querências, cada um com suas escolhas. E... todo mundo junto.
Hoje acordei com uma mágoa danada no peito. E dói que chega a dar arrepios. Uma hora vai passar, mas eu sei que não vou esquecer. Tudo porque alguém achou de tentar me dizer “verdades”. Alguém que quero tanto bem e que me é tão caro, cismou em me dizer verdades que não são minhas, que não me servem, que eu não compraria, que não quero para mim.
Mas não dá nada. Vou tocar em frente e fazer um dia melhor acontecer. Quem sabe a mágoa resolve me deixar cantar um samba, enquanto mando meu recado a esse amigo querido, tão equivocado a meu respeito? Eu sou feliz assim.

A estranha 15:16


Fazia frio naquela noite. O menino não se importava, queria ver a chegada da estranha. Há algum tempo o comentário no pequeno arruado era um só: ela vai chegar. Só falavam nela, só tinham olhos para a casinha amarela de janelas e portas sempre cerradas. E ele sentia que com ela algo de bom poderia acontecer ali, no lugar onde ninguém mais queria ir.
Plantou os pés na soleira. Agachou, levantou e sacudiu poeira tantas vezes que nem lembrava mais se estivera em outro lugar que não aquele: o batente da casa amarela. O pai havia saído cedo, quando a serração encobria o terreiro e não deixava passagem para visão alguma. O rio só dava sinal de estar ali porque era cantor dos bons e nunca parava de soprar a cantilena. Dia e noite.
As mãos gelavam. Juntava, levava à boca, jogava todo o ar dos pulmões para aquecer. Bermuda e camisa de tecidos gastos não lhe ofereciam o conforto necessário para o frio da serra. Chinelos rasos. Quase raspava os pés na areia grossa. Frio, frio, frio. Mas ele estava decidido: não arredaria o pé.
Quando o sono começava a lhe render, ouviu o ranger das rodas no caminho. Limpou os olhos, levantou e juntou-se ao cachorro, que latia alto na porteira torta. Demorou para perceber os vultos, que aos poucos se desvencilhavam da neblina baixa. Pararam em frente à casa e ele pôde ver então os longos cabelos finos e negros. Desde então, jamais saíram dos seus olhos. A pele parecia ter esquecido de brincar no sol. As mãos traziam dedos longos e delicados. Jamais haviam arado a terra, pensou. A estranha, apesar de não parecer com ninguém que conhecia, se fez parente próxima quando sorriu.
Obedecendo às ordens do pai, foi ajudar. Malas, caixas e aquele malote estranho, de couro preto. Tudo cheirava a cidade grande, a estrada e a mundo de verdade. A mãe chegou depressa, secou as mãos, que sempre estavam a serviço, ajeitou o lenço na cabeça e deu abraço tímido na moça. Ela era herdeira daquele pedaço de chão que ninguém era louco de querer. Pois ela quis. E ele ainda não entendia o porquê.
Café e bolo de milho, ao lado do fogão à lenha, finalmente trouxeram calor à madrugada que também resolveu chegar. E um brazeiro se formou no ar quando a moça abriu o malote de couro preto, tirou de dentro o instrumento de madeira e tocou para os anfitriões cansados.
O nome era difícil de aprender: “Rebeca?”, tentou o pai. “Rabeca, Chico, rabeca”, disse sorrindo a moça. Ficaram amigos. A rabeca o provocou por dias a fio, com a música que jogava todos os sons do mundo no ar. Às vezes gemia, reclamava, soluçava como as viúvas da seca com saudade dos maridos distantes. Outras, era alegre, serpenteava, gargalhava entre o riacho teimoso e a caatinga _ que se espalhava, malvada entre os resquícios de plantação.
O menino pegou paixão por aquilo, descobriu que a vida poderia lhe trazer surpresas boas, como a moça da cidade e a rabeca cantadeira. A música, aquela estranha maneira de juntar o céu e a terra através das cordas de metal, virou musgo na pele e no coração.

Canção das lavadeiras 15:10

Elas passavam cantando, antes mesmo do sol se exibir por inteiro e chamar todo mundo à vida, quando o friozinho da madrugada tentava segurar as horas, molhando a grama verdinha lá fora. Adorava o ritual dos sábados. Bastava ouvir o chiado dos chinelos e o burburinho do grupo, saltava da cama, lavava o rosto e me jogava.
A maioria (entre as quinze) já havia dado o filho para meus pais batizarem, então, me deixavam seguir estrada afora. O que para elas era um ritual, misturando obrigação e prazer, dever e alegria, para mim era a mais perfeita festa. O caminho era longo, mas quase não sentia o barro do chão querendo virar braseiro sob meus pés.
A empreitada tinha que valer a pena e render várias tarefas ao mesmo tempo. Já que eu insistia tanto naquilo, teria que me fazer útil e ajudá-las. Era preciso catar carrasqueiras, coquinhos da estrada, pitanga, caju e araçá, que seriam jogados dentro da antiga saca de farinha _ maloca da nossa produção da beira de estrada.
As árvores do caminho eram de todos que passassem por ali, então, se eram de todos também nos pertenciam. Os restos mortais dos coqueiros também, por isso podíamos pegar toda a lenha do mundo, que ninguém nos cobraria depois.
Como dançarinas, equilibravam, sobre as cabeças, rolos de pano bem montados, onde levavam as bacias de alumínio, divinamente brilhosas, areadas, espelhando cada uma de nós.
Elas riam da minha festa e quando íamos nos aproximando do riacho, como mágica, começavam a cantoria. Uma chamava os versos, as outras cobriam o refrão. Saudades de maridos, roubados pelo mar. Louvações à Iemanjá, às sereias. Até a produção das casas de farinha virava música.
Eu me esbaldava de rio, de música, histórias e sorrisos fartos. O almoço era feito ali mesmo. Latões serviam de panela, onde caranguejos (catados no mangue ao lado) eram cozidos. Ostras eram tiradas nos talos finos das árvores fincadas na lama e comidas cruas, com sal. A água era levada em pequenas cumbucas de barro, fria e saborosa.
Não havia passeio melhor. Chegava em casa, no final da tarde, com o sol se despedindo do mundo, feliz. Depois de um bom banho, um belo prato de sopa e de aconchego de mãe, me entregava ao sono, embalada pelas cantigas do rio e pela felicidade pura, colhida das lavadeiras.

A tiriva 15:06


Foi um caso de amor com final infeliz, aquele. Trágico, digamos. A tiriva chegou em sua casa meio por acaso e a pegou de jeito. Ela, que sempre pareceu não dar a mínima para os bichinhos que vez por outra tentavam seduzi-la e serem recolhidos das ruas, caiu de amores pelo rascunho de papagaio. Não havia quem duvidasse que a recíproca era verdadeira.
O bicho também lhe tinha o maior afeto. Era até bonito de se ver. Ai de quem se metesse a besta e dissesse que a tiriva era feia, ou ameaçasse a integridade física da bichinha. A dona, zelosa, virava uma fera e devolvia na mesma moeda.
Quando ia para a escola, antes de sair, pegava a bichinha nas mãos, afagava, prometia voltar logo e se deixava bicar de leve. Ao voltar para casa, mal largava a mochila, era recepcionada pela serelepe prima das araras, que abanava o rabinho comprido, sacodia as penas e balançava a cabeça, em gestos frenéticos. O pai dizia que a tiriva só não falava para não ir à escola, de tão esperta que era. Parecia gente. Se estava zangada, se recusava a comer. Quando estava feliz, pulava entre as poltronas, ensaiava piados estridentes e mostrava festa com as bicadinhas gentis.
Mas o destino às vezes pode ser cruel, apronta armadilhas e havia um inimigo à espreita. Certo dia, sem aviso, a vizinha também caiu de amores por um bicho. O gato mais peludo e de olhos maquiavélicos que ela já havia conhecido. “Não gosto de gatos, não gosto de gatos”, repetia, defendendo-se da presença ameaçadora à sua tiriva.
Passou a não deixar mais a bichinha passear solta pela casa. Seu mundo _ enquanto o gato da vizinha permanecesse por perto _ seria resumido às quatro paredes do quarto. Enchia de mimos, para que ela não sofresse e pensava que assim tudo estaria bem.
Um dia, voltando da escola, correu para o afago corriqueiro e, ao vencer a sala, veio o susto: alguém havia deixado a porta do quarto aberta. Baque no peito. Chamou pela tiriva, correu todos os cômodos, pânico crescendo. Ao chegar ao quintal, viu o peludo de olhos amarelos, cruéis, feliz da vida, empapuçado, pensando na vida sobre o muro. No cantinho da parede, as penas coloridas eram o sinal de que a tiriva escapou e foi direto para as garras da morte.
Chorou, lamentou, prometeu nunca mais ter bicho algum. Jurou ódio mortal a todos os gatos. Cresceu, comprou um peixe beta. E foram felizes para sempre... até ele morrer mofado no aquário.

Banho de Chuva 13:46

Aquele dia comprido parecia que não ia acabar mais. Chuva que não parava. Fina, grossa, com vento, silenciosa. Chuva, chuva, chuva. E eu ali, dentro de casa, olhando pelas frestinhas que me restavam pela janela. Querendo brincar lá fora, sem poder. "Invente algo pra fazer em casa", disse meu pai. "Já pensou nas crianças que não têm onde morar?", soltou, lá da cozinha, a minha mãe.

Eu não estava muito querendo saber das outras crianças, sinceramente. Nem queria perder meu tempo com invencionices de menina dentro de casa. Queria mesmo era aquela chuva. Sim, lá fora. Queria pular na lama e me sujar de vermelho, queria fazer bonecos e panelinhas de barro, para depois brincar de casinha com as amigas, queria cair no mar e fingir que era um lençol quente, me protegendo da água que caía do céu.

"Menino não tem querer", era o que diziam os mais velhos. E eu tinha que obedecer, sem bico, sem reclamação e sem batidinhas no pé. Não adiantava, aquela chuva não seria minha. Não seria? Pois bem...

Esperei o primeiro descuido dos meus pais, que não dispensavam o cochilo depois do almoço. Olhei em volta, conferindo se havia irmã mais velha na área de risco, pisquei para a irmã do meio _ que também sonhava com o aguaceiro na rua _ e pulei a janela. Quase perco os dedos das mãos, na pressa da fuga, e machuquei feio os joelhos, quando ganhei as ruas. Nada importava, a chuva era minha.

Deus nos abençoa quando manda chuva. Isso eu aprendi com minha avó sertaneja. Deus fala com a gente através dela. Quando está zangado, manda trovões e raios. Quando está contente, manda a garoa fina, para regar o mundo todo. Deus é chuva fina, molhando a grama, a calçada, o barro vermelho, o mar. Deus corre no riacho, evapora e volta para o céu.

Eu já sabia disso, quando era criança. Adorava a chuva, quando podia desfrutar dela. Dias de chuva só tinham graça se eu podia brincar na rua. A travessura daquele dia, é claro, foi descoberta. Rendeu uma febre, roupas molhadas e sermões. No entanto, fui feliz.

Hoje eu quis muito correr na chuva, chamar todo mundo para a minha farra. Não deu. Meu dia foi comprido, cheio de saudades e de chuva fina (dentro e fora de mim).

Estranhos 13:13

Eu, minhas perspectivas e minhas crenças, de mãos dadas pelas ruas de Tubarão. Com todas as minhas certezas amarradas, achando saber quase tudo do pouco que vivi, esbarrei naquele homem.
 
O sol fervente do quase meio-dia não ajudava muito a traduzir qualquer pista sobre pessoas ou coisas. Eu queria mesmo escapar do calor, pagar as contas e apressar o passo, antes do trabalho. Mas ele, ali no meio do caminho, me fez parar e olhar para os lados, diminuindo a marcha agitada da sexta-feira.
 
Falando apressado _ numa parada de ônibus, apoiado na velha bicicleta _ era ouvido por estranhos, que absorviam sua vida, espantados. Sem paradeiro, ganhava o mundo. Encharcado de suor, maltrapilho, barba por fazer, misturava força e cansaço nas expressões.
 
Devo ter ficado mesmo impressionada, porque ele me percebeu e se percebeu comigo. Despediu-se dos ouvintes e atravessou a rua, quase ao meu lado. Fingi estar novamente em minha pressa cotidiana e entrei numa loja qualquer. Minutos depois, ele também entrou.
 
Sem licença, pediu a atenção dos clientes, funcionários, abriu sua maleta e pediu ajuda. Poucos se importaram, cheios de suas vidas, perspectivas e crenças, como eu. Tentei ser um deles, mas não deu. Parei e ouvi. Dei minha parca contribuição e fui abençoada, em retribuição.
 
Entre os que pareciam não estar ali, alguém lhe jogou a arrogância comum dos humanos na face. Em resposta, ele usou de altivez e desenrolou todo seu novelo. Ficamos ali, acompanhando o duelo dos dois, que não tinha fim. Em seu falatório, disse não se surpreender mais com o mundo. As estradas, as dores, as humilhações e desilusões já haviam lhe ensinado tudo. Desaprendeu a ser gente, disse. Preferia lidar com bichos. "A maldade é o que alimenta esse tempo. Os bons silenciam para não serem tragados", disparou.
 
Senti covardia e compaixão se apossando de mim. Penso, aqui comigo, o que faz dos homens irmãos? O que faz alguém julgar pela roupa que cobre um corpo, pelo sapato que se usa, pelo suor ou pelo perfume?
 
O que faz um semelhante cuspir veneno no outro pela cor da pele ou pelo dinheiro que se leva no bolso? O que faz de mim alguém melhor do que aquele homem? É triste o desconhecimento humano a respeito da própria raça e dos motivos de estarmos aqui, no mesmo tempo, no mesmo espaço.
 
Tudo finda, tudo é tão breve, tudo acaba em pó. Voltei para casa lembrando das palavras ásperas que o moço da loja jogou no pedinte e das palavras boas que ele me lançou. Quem na verdade é o miserável dos dois?
 
Não sei se mereço as bênçãos que recebi, através dele. No entanto, me sinto bem com o presente. Do moço rude nem lembro o rosto ou os panos que lhe cobriam de arrogância. Mas aquele velho _ que seguiu seu caminho com sua história e sua velha bicicleta _ sei que irá comigo.

O circo 13:08

Tarde calma, com os segundos atravessados em meio aos ponteiros mais poderosos do relógio. Maresia embalando o vento, encrespando os cabelos dos coqueiros, assanhando a areia. Paralelepípedos sobrevivendo ao fogo da terra. E tudo bendizendo a rotina do vilarejo. 

Em meio às cores simples do cenário, de repente o alto-falante anunciava a chegada da festa.  

Largávamos as tranças das redes, que surgiam das mãos de "Seu" Marinho _ velho pescador, exímio conhecedor dos segredos do mundo. Em dias assim, éramos seus ajudantes, aprendizes de redeiros, entre as muitas descobertas das férias. Mas nada seria mais interessante que aquele anúncio, às quatro da tarde. "Hoje tem espetáculo? Tem, sim senhor!".  

Molecada solta, com chinelos gastos nos pés, arrastando carrinhos de latões, puxados com barbantes. Meninos e meninas de todos os tipos e tamanhos. Loiros, mulatos, cafuzos. Pequeninos, graúdos, barrigudos, bem cuidados. Em São José da Coroa Grande as diferenças eram esquecidas. E, afinal, éramos crianças. Criança vê melhor o que importa nessa vida. Amizade independia de cor, credo, cara limpa, suja ou sapatos engraxados. Valiam mesmo a camaradagem, as criações mirabolantes, a partilha de tudo _ dos piões de madeira à bicicleta ganha no Natal.  

O grupo se avolumava a cada esquina. Eu e meus irmãos nos jogávamos no meio da farra. Quem engrossasse o canto do palhaço ganhava balas e balões coloridos. Pois bem, enchíamos a rua de gritos desafinados e os bolsos de guloseimas. Carnaval desfilando no peito.  

Atrás do bloco, carros cambaleando, carregados de bailarinas com roupas desbotadas, maquiagem pobre, purpurina fingindo ser ouro em saias de tule amarelado. Cachorros, macacos, leões cansados. Música desencontrada. Tubas, cornetas, tambores... e nós. Finda a exibição no passeio público, voltávamos correndo para casa. Era preciso garantir o ingresso.  
Roupa nova, passada sobre a cama, imaginação prestes a escapar, sem destino e sem volta. 

À entrada do espetáculo, pipoca, maçãs carameladas, algodão-doce. Entre os mil furos da lona amarela e azul surgiam estrelas, geradas pelos refletores. Dentro, armações de ferro e madeira separando o palco do público.  

Não lembro de algo me extasiar mais do que aquelas noites no circo. Todos os portais da fantasia se abriam à nossa frente. Mergulhávamos sem medo, esquecidos que o mundo lá fora nos esperava, com pressa e cheio de planos para nos fazer adultos.  

O encanto foi tão forte que permanece comigo, na caixinha das melhores lembranças. Trago a festa bem guardada, onde o tempo não pode tocar. Sempre que preciso, lanço mão da velha cantoria, me cubro de cores, me jogo no mundo e transformo a vida em espetáculo.

O velhinho cor-de-rosa 13:03

O mundo parecia bem maior, em meus catorze anos. Maior e mais difícil de vencer. E aqueles dias me faziam virar uma conchinha, em meio à dor da perda do meu melhor irmão, aos vinte anos de idade. Tudo havia virado de cabeça para baixo, como se um tufão fizesse a perfeição virar caos, de uma hora para a outra. Assim, de repente, comecei a duvidar das coisas mais sólidas, nas quais sempre acreditei.  

Foi num desses dias com cheiro, peso e cor de chumbo, que conheci aquele homem. O colégio - onde ele havia estudado, muitos anos antes de mim - era dirigido por pastores evangélicos, de origem norte-americana. Tudo que uma menina, criada como passarinho solto, não queria, não precisava.  

Muros altos, arquitetura romana, portões de madeira nobre. Paredes gigantescas, pintadas de cinza. Portas de vermelho vivo, sangue. Eu e o prédio, em cinza e vermelho, guardando crianças perdidas, histórias e um tempo que jamais andaria para trás. Minha rotina era escapar dos bedéis, dos cultos diários, das aulas mornas, e me refugiar no jardim - escondido atrás da marcenaria, nos fundos do colégio. Em casa, procurava fingir normalidade, em nome dos quase-sorrisos que minha mãe tentava nos oferecer, para que continuássemos acreditando nos anjos. Para que ela voltasse a acreditar.  

Naquele dia, sentei no alto do muro e fiquei esperando o intervalo passar - olhando o Capibaribe correr lento, em meio ao asfalto fervente das dez da manhã. Avisaram: ele chegou. Terno azul marinho, pasta de couro na mão, nuvens no cabelo e pele cor-de-rosa. Sorriso tranqüilo, de quem tem o mundo mais colorido, de quem nunca perdeu a esperança, os sonhos ou o melhor irmão.  

Pareciam abelhas, meus colegas zanzando em sua volta. Professores virando meninos, jornalistas, todo mundo querendo estar perto. O nome era pomposo e me lembrava a biblioteca de meu pai, onde pela primeira vez li o "Casa Grande e Senzala", escrito por ele _ numa edição amarelada, em papel grosso e palavras antigas soando como novinhas em folha. Gilberto Freyre, o nome, não combinava com aquele senhor de andar lento, corpo frágil e jeito tão feliz.  

Resolvi também me atrever e chegar perto. Desci de minha ingênua torre adolescente e o esperei no caminho para o auditório. Ao perceber que ele me olhava, enquanto chegava em minha história, sorri _ sem medo de me entregar à alegria. Passou de leve a mão em meus cabelos e seguiu para a palestra, num auditório cheio de jovens, sonhadores como eu.  

Depois daquele encontro com o velhinho cor-de-rosa, ouvindo tudo que ele fez, construiu e perdeu, sem temer tempestades, tufões e maremotos, entendi que os anjos de minha mãe existiam. Voltei a acreditar em mim e nas histórias que me contaram. E não deixei mais de escrever.

Calor em noite fria 12:59

A noite era fria, mas fria mesmo, daquelas de fazer o cristão pensar que os ossos estavam prontos para se despedaçarem. O cansaço, portanto, era dobrado. Acostumada aos quarenta graus a pino sobre a cabeça, a sensação era ainda mais forte para mim. Cheguei em casa, fechei janelas e portas, liguei o chuveiro na temperatura mais quente possível e esperei a casa inteira _ que não era mais que uma caixinha de fósforos _ virar sauna.
 
E então, o toque inconfundível do celular me despertou do quase êxtase de me sentir aquecida novamente. Quando já me preparava para desfrutar do jato quente, fui obrigada a largar tudo e correr para o quarto. Até achar o bendito telefone, pensei que sofreria um choque térmico, partiria mesmo ao meio e passaria dessa para melhor.
 
Pressa e irritação ao atender a chamada. Silêncio do lado de lá e, em seguida, o barulhinho chato de ligação finda. Humor beirando o caos. Nervos à flor da pele. A caminho do chuveiro, toca de novo o telefone. A recepção já não foi a mesma e eu queria realmente que o ser insistente do outro lado percebesse que eu estava para poucos amigos.
 
Enfim, ouço a respiração ofegante do lado de lá, com a voz infantil, inconfundível, vinda de tão longe. “Titia?”. Coração aos saltos. Entre as minhas declarações de amor, saudade e indagações sobre onde ela estaria, com quem e o que queria, mais uma vez o silêncio e a respiração de quem está mesmo fazendo algo errado.
 
Insisti nas perguntas. “Estou em casa. Não fui eu que liguei. Apertei no botão verde e você me ligou de volta, tia”. Entendi o porquê da respiração acelerada e sorri. A ligação era clandestina e me trazia a paz considerada impossível minutos antes. Como aquela menininha, com apenas seis anos de vida, tinha tanto poder sobre mim? Como era capaz de me fazer tão bem e domar todas as minhas inquietações assim?
 
Tentei falar, com mais calma dessa vez, com toda a doçura do mundo. Busquei as melhores palavras, as mais lindas, as mais fáceis. E quis prolongar aqueles segundos pela vida toda. Ela interrompeu quando eu ainda elaborava a primeira frase: “Eita, mamãe está vindo... Tô acabando com os créditos dela... Vou desligar”. A confissão, feita num quase sussurro, me arrancou a melhor gargalhada e dizimou, num sopapo, todas as atribulações acumuladas durante o dia. Era mesmo uma ligação clandestina, das boas. O barulhinho do telefone dessa vez fez carinho, tomou conta de mim e foi se misturando à batucadinha no peito. Já não sabia se o calor que me tomava naquele instante era do quarto cheio de fumaça ou se a noite havia decidido me mandar a receita certa para recobrar a serenidade e o bem-estar.
 
Entrei no chuveiro com um sorriso colado no rosto. Fui dormir aquecida, com a sensação de que o mundo inteiro ao meu redor havia vencido o frio e descansava em paz.

O gigante dos meus dias 12:55

Ele cheirava a mato e lavanda. Tinha a pele áspera, pintada pelo sol forte. Voz forte de trovão, com a mansidão do vento leve nos fins de tarde. Tudo nele impressionava. Desde o chapéu ao chinelo de couro cru, que nunca ficava gasto. Eu admirava aquele homem, olhava de baixo para cima, como quem encara um gigante. Porém, o que mais me chamava a atenção eram os imensos olhos castanhos _ que falavam alto, gritavam palavras de amor, sem emitir um só gemido. Era grande o meu avô.

Um dia, sem que ele percebesse, eu invadi sua vida e quase fico por lá, sem achar o caminho de volta. Sem querer achar, sem tentar, sem qualquer motivo que me fizesse puxar o trinco e trocar de cenário.

Sentei entre a cômoda antiga e a cama de campanha que havia no quarto pequeno _ onde ele ficava durante os verões _ e fui folheando as páginas curtas, amarradas com barbante, que me jogaram na história mais linda que conheci. Caderninhos incontáveis guardados nas gavetas, encapados com papel camurça de todas as cores.

Tudo anotado ali, com tinta preta. Seus primeiros anos na escola, suas descobertas nas ruas estreitas beirando as pontes, seus “idílios” (eu amei aquela palavra antiga e a incorporei ao meu vocabulário de menina, arrancando gargalhadas dos mais velhos)...

O casamento com a menina tão mais jovem e com perfil grego em meio à caatinga distante. O nascimento dos filhos, as tarefas e os percalços em seu caminho de pai extremoso e preocupado com as escolhas de cada um. Os dias de chuva no sertão, levando mulheres e meninos às ruas, enlouquecidos com a água vinda do céu. Tudo bem guardado nas páginas que começavam a ser devoradas pelas traças. Traças deveriam ser extintas, pensei. Elas comem as vidas da gente e tudo que ficou delas.

Um dia ele foi embora. Sem aviso prévio, sem qualquer sinal de que o sopro que lhe empurrava a vida estava chegando ao fim. Guardei comigo sua herança: os cadernos vermelhos de páginas amarelas, o barbante, o cheiro de mato e lavanda e o amor imenso que me banha o corpo através do sangue.

Canto de liberdade 12:51

Enquanto a maioria aproveitava o sol e os banhos no riacho, ele andava léguas antes do sol nascer. Saíam, os dois filhos, o pai e um tio, com chinelos gastos, panos protegendo a cabeça, chapéu de abas largas e facões na cintura. Prontos para buscar a sobrevivência, nos cortes grosseiros e firmes nos talos do canavial imenso.
 

Caminhos estreitos, folhas verdes finas, dançando e apontando pro alto. Quase não dava para ver o céu. Na estrada o caminhão ia recolhendo um a um. Ele se sentia mais bicho que menino. Então, cantava pra dentro, como havia aprendido com a mãe.
 

Um dia, chegou a arruado onde ele morava uma escola. Ele foi, achando que não ficaria nem um dia sequer ali, parado, sentado numa cadeira tosca, ouvindo alguém lhe falar de coisas que ele jamais veria. A sala era pequena, com poucos lugares e dois velhos candeeiros queimando querosene pendurados nas paredes. A algazarra misturava vozes de meninos e quase homens, querendo descobrir onde aquilo tudo levaria.
 

Foi então que ela entrou: a professora. Moça mais bonita que já conhecera. Quase criança, se medissem os anos pelo tamanho do corpo. Quase mulher, se contassem os dias pelo olhar de alguém. Com paciência, cuidado e falando de coisas que ele bem conhecia _ riacho, cana caiana, frutas da estação, broa de milho, ela foi mostrando como para cada coisa vivida existiam sinais. Era, talvez, a porta que lhe mostraria a saída para a vida sonhada. Aprendeu a ler, escrever e contar. Aprendeu mais sobre o que existia do lado de fora das cercas. Criou asas. Juntou coragem, moedas e duas mudas de roupas e saiu dali.
 

Anos depois, com calos nas mãos e na alma velha, voltou à usina. Viu ao longe o canavial em chamas, meninos na mesma função e buscou o riacho. Por tanto tempo viveu ali e jamais pôde aproveitar aquele banho. Ensaiou o primeiro contato, tirou os sapatos e se deixou afundar nas águas geladas. O peito acelerou tanto que a garganta não segurou o que vinha guardando ali dentro. As mãos tentaram jogar o riacho pro céu. O canto de menino, que sempre retumbou dentro dele, saiu aliviado, feliz.
 

Só agora, tanto tempo depois do primeiro dia diante das letras _ que lhe deram rodas aos pés e asas para todos os sonhos _ ele podia ser criança e festejar a vida, com toda a liberdade.