Um dedo de prosa

Germana Telles

A estranha 15:16


Fazia frio naquela noite. O menino não se importava, queria ver a chegada da estranha. Há algum tempo o comentário no pequeno arruado era um só: ela vai chegar. Só falavam nela, só tinham olhos para a casinha amarela de janelas e portas sempre cerradas. E ele sentia que com ela algo de bom poderia acontecer ali, no lugar onde ninguém mais queria ir.
Plantou os pés na soleira. Agachou, levantou e sacudiu poeira tantas vezes que nem lembrava mais se estivera em outro lugar que não aquele: o batente da casa amarela. O pai havia saído cedo, quando a serração encobria o terreiro e não deixava passagem para visão alguma. O rio só dava sinal de estar ali porque era cantor dos bons e nunca parava de soprar a cantilena. Dia e noite.
As mãos gelavam. Juntava, levava à boca, jogava todo o ar dos pulmões para aquecer. Bermuda e camisa de tecidos gastos não lhe ofereciam o conforto necessário para o frio da serra. Chinelos rasos. Quase raspava os pés na areia grossa. Frio, frio, frio. Mas ele estava decidido: não arredaria o pé.
Quando o sono começava a lhe render, ouviu o ranger das rodas no caminho. Limpou os olhos, levantou e juntou-se ao cachorro, que latia alto na porteira torta. Demorou para perceber os vultos, que aos poucos se desvencilhavam da neblina baixa. Pararam em frente à casa e ele pôde ver então os longos cabelos finos e negros. Desde então, jamais saíram dos seus olhos. A pele parecia ter esquecido de brincar no sol. As mãos traziam dedos longos e delicados. Jamais haviam arado a terra, pensou. A estranha, apesar de não parecer com ninguém que conhecia, se fez parente próxima quando sorriu.
Obedecendo às ordens do pai, foi ajudar. Malas, caixas e aquele malote estranho, de couro preto. Tudo cheirava a cidade grande, a estrada e a mundo de verdade. A mãe chegou depressa, secou as mãos, que sempre estavam a serviço, ajeitou o lenço na cabeça e deu abraço tímido na moça. Ela era herdeira daquele pedaço de chão que ninguém era louco de querer. Pois ela quis. E ele ainda não entendia o porquê.
Café e bolo de milho, ao lado do fogão à lenha, finalmente trouxeram calor à madrugada que também resolveu chegar. E um brazeiro se formou no ar quando a moça abriu o malote de couro preto, tirou de dentro o instrumento de madeira e tocou para os anfitriões cansados.
O nome era difícil de aprender: “Rebeca?”, tentou o pai. “Rabeca, Chico, rabeca”, disse sorrindo a moça. Ficaram amigos. A rabeca o provocou por dias a fio, com a música que jogava todos os sons do mundo no ar. Às vezes gemia, reclamava, soluçava como as viúvas da seca com saudade dos maridos distantes. Outras, era alegre, serpenteava, gargalhava entre o riacho teimoso e a caatinga _ que se espalhava, malvada entre os resquícios de plantação.
O menino pegou paixão por aquilo, descobriu que a vida poderia lhe trazer surpresas boas, como a moça da cidade e a rabeca cantadeira. A música, aquela estranha maneira de juntar o céu e a terra através das cordas de metal, virou musgo na pele e no coração.

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