Um dedo de prosa

Germana Telles

Louro da Sanfona 05:03

Ele tinha sete anos e nunca tinha visto a chuva. Uma vez só, ele quase encontrou com ela, quase chegou a vê-la, mas caiu doente, justo no dia que ela veio e não pode sair da cama. Diziam que foi a coisa mais linda de se ver. Ele só ouviu o barulho dos latões e a algazarra dos amigos, dos velhos, moços e o chororô das mulheres, agradecendo aos santos por toda a lama que invadia a cidade e lambuzava a cara de todo mundo.


Chalapt, chalapt, chalapt. As alpargatas zunindo no meio do mundo... E ele doido pra levantar daquela cama de palha, sair do quarto escuro e se fartar de chuva. Não foi. Ele sempre não ia, não sabia, não conhecia, ficava para trás.


Por isso, tomou força, cresceu bem muito aquele intento: ele faria chover, faria sim. Mas como fazer? Um dia ele ouviu Zé da Gaita dizer que a música chamava coisa boa, trazia fartura das boas. Quem canta os males espanta, dizia a mãe. Pois aprenderia a tocar um instrumento. E foi atrás de Xerém, porque ele era sanfoneiro conhecido, tocava em tudo que era festa, e sabendo o motivo pelo qual ele precisava aprender, não se negaria a ensinar. Afinal, quem não queria ver a chuva descendo à terra?


O homem abriu aquele sorriso amarelo _ porque sim, tudo era amarelo naquela pessoa: dentes, mãos, unhas, olhos e cabelo. “Tocador? Você quer ser tocador, menino?”. O homem ainda zombava dele? Depois de muito balançar a pança redonda, bater os pés com força no chão, jogar o chapéu sobre o balcão e olhar bem firme para ele, Xerém tossiu de leve, cuspiu fora o fumo e aceitou a tarefa. “Pois se você fizer chover mesmo, nem precisa me pagar nada”. Trato feito.


A sanfona pesava, machucava as pernas finas, calejava, doía. Mas era preciso suportar. O nhém, nhém, nhém desafinado aos poucos foi tomando corpo e ele olhando pro céu. Nenhuma nuvem aparecia, mesmo com os primeiros acordes, depois de duas semanas de aulas _ quando Xerém achava tempo e vontade pra ensinar ou quando não estava bêbado demais para isso.


Numa noite quente, enquanto tentava tirar algumas notas da sanfona velha, pensou: não adianta, vou morrer e não vejo a chuva. Foi sentar embaixo do umbuzeiro no quintal. Desistiu de ser homem, de trancar aquela mágoa da terra seca que lhe impedia de ser feliz, e chorou. Chorou mesmo, de soluçar, feito menino chora. Deixou que toda a raiva saísse pela garganta, que todos os sonhos escapassem nas lágrimas e fossem embora de uma vez, para nunca mais voltar. Porque não adianta sonhar quando a única certeza que se tem é que nada acontece para quem tem sete anos, se mete a besta e quer desafiar Deus nessa vida. A chuva não era para aquela gente. Ali, naquele fim de mundo só tinha era desgraça mesmo, pensou.


O choro cresceu, o lamento foi ficando fino, feito som de sanfona velha. A música mais triste que ele já havia tocado saía de seu peito pequeno, apertado feito fole gasto. Os primeiros pingos tocaram o chão. Ele não se deu conta, porque era tanta lágrima que nem ligava mais. Mais um, mais outro e mais uns vinte pingos fortes. De repente, ele parou de chorar. Viu as portas dos vizinhos se abrirem. Amuados, sem jeito, como se sentissem vergonha dos seus desejos, eles ganharam a calçada.


A chuva! A chuva veio! Gritaram os amigos, lhe chamando para a festa. Era a sua vez, era chegada a hora. Sem medo algum de estar sonhando _ e se fosse sonho, ele morreria dentro dele _ Lourival tirou a roupa, correu pro centro do terreiro vermelho e se deixou tocar por Deus, ali, no meio da lama quente.


Nasciam ali, naquele instante, as melhores canções que o sertão conheceu. Morria ali o menino e surgia Louro da Sanfona, o maior tocador que existiu no Pajeú.

A parte do morto 02:18

Ele não era igual aos outros. Tinha fama. Sabia que os colegas o respeitavam pelos feitos extraordinários e por isso queria mais. Seguidores? Alguns. Toda a confraria: vinte e poucos bêbados enchendo o lugarejo com festas e lendas. Maior orgulho de Vanderlei: trânsito livre entre as mesas das autoridades. Do boteco da Nadir ao famoso Castelinho - melhor bar do Abreu do Una - não havia quem lhe negasse um copo. Sabia usar a majestade com maestria.


"Vanderlei morreu", grito na madrugada. Foi um Deus nos acuda. Nunca se viu tantas velas acesas, tantos lençóis nas varandas, tantas casas silenciosas. Bares arriaram as portas. Caminhões de bebuns dos engenhos vizinhos lotaram a praça. A molecada nova se acabou de tomar cachaça e oferecer ao morto. Travanca, Satú, Ferreiro e Marvina - companheiros de copo - costuravam vielas, sem rumo. Choro e pinga, encharcando golas e punhos amarelados.


Era simples a rua onde morava o rei. A vizinhança tinha lá os arranca-rabos de praxe nos vilarejos do interior, mas isso era coisa de família. E eles eram assim, quase parentes. Dividiam o quarteirão: autoridades, pescadores, pedreiros, lavadeiras. Gente graúda e gente simples. Povo bom de partilhar a calçada e os dias.


Vanderlei, apesar de viver nos balcões, contando histórias, arrancando risos dos frequentadores, dava duro para garantir sua pinga. Isso lhe garantiu certo respeito. E virou personagem diário dos contos nos fins de tarde. Levava marmita para os vizinhos, carregava feixes de lenha, limpava quintais, vendia frutas.


Entre os delírios e a razão, encontrou Lica. Morena, baixa, tosca. Corpo levado pelo vento. Braba feito siri na lata. Batia nos filhos e no homem com carrasqueiras, tiradas dos coqueiros e guardadas na soleira, deixando todos de sobreaviso. Catava piolhos, fazia comida, lavava roupas, limpava o terreiro, avançava com unhas e dentes em quem tentasse violar seu reinado. 
Com ela, seis filhos. Dizem que Vanderlei descendia de europeus puro-sangue. Olhos azuis, pele clara, nariz pontudo, alto, cabelo bom. Porte de rei.

Sua pompa, temperada com a morenice da mulher, deram aos filhos beleza exaltada no lugar. 

No dia de sua morte, a algazarra ganhou a rua, depois do susto e do silêncio. Baldes, caldeirões e latas choravam nas mãos dos bebuns. Música desencontrada, suor e cachaça na procissão do enterro - que demorou duas horas até chegar ao cemitério. Flores murchas jogadas no caixão roxo, pronto para se despedaçar.


Calor e sede agoniavam os bêbados, loucos para pôr fim à demora. Até que Zé Alcides, coveiro, encarnou um zombeteiro e cobrou todas as garrafas. O homem estrebuchava, se esticava, soltava palavras estranhas. Afasta, afasta! Toda a cachaça deveria ser jogada aos pés da tumba. Multidão dispersa, bêbados tristes, cidade quieta. O coveiro recolheu seu estoque. Contam que, na mesma noite, Vanderlei deu seu último passeio pela terra e entregou cetro e coroa. O Abreu já tinha um novo rei.

O apito do trem 02:04

Desde criança eu quis experimentar. Era sonho fácil, daqueles que a gente desenha, cena por cena, como será na hora em que se fizer real. Mas a vida correu e fui deixando para depois, já imaginando que teria que deixá-lo. O que me incomodava era a certeza de que eu gostaria. Eu já gostava, para ser franca. Sabe aquelas frutas que você nunca comeu e sabe que têm sabor inconfundível? Aquele lugar que você nunca foi e mesmo assim chega a se emocionar só em pensar nele? Assim era minha relação com os trens.

Até que, numa tarde comum de trabalho, fui informada de que faria uma matéria sobre um breve passeio _ entre Imbituba e Tubarão.
Euforia contida, acordei cedo e peguei a carona que me levaria até a estação. Esperei o grupo que estaria comigo na viagem, contando os segundos, ansiosa. Embarcamos no início de uma tarde iluminada, com um sol escancarado fazendo festa, abrindo os caminhos.


Olhei a locomotiva, ensaiei passos trôpegos sobre os trilhos, fiz reverência silenciosa. Tentei ouvir o coração da velha máquina. Ela parecia me olhar, desafiadora. Sentia sua respiração, seus olhos fixos na linha reta que teria que vencer. Portas abertas, toquei de leve o vagão e subi. Embarque feito, encantamento de criança.

Fechando os olhos eu seria capaz de rever todas as pessoas que já estiveram ali. Todas as idas e vindas, felizes, desesperadas, tristes, solitárias. Quantas expectativas encheram aquele corpo de madeira, impecavelmente arrumado para receber seus ilustres convidados. Dia após dia.
Lembrei o velho poeta Ascenso Ferreira e seu “vou danado pra Catende com vontade de chegar...”. Sentei e abri as janelas. O peito deu um salto. Avisando que partiria, num choro doído, ela mostrou valentia e soltou fumaça pelas ventas. “Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar...”

E lá fomos nós, entre o mar e pequenos montes, estradas largas e estreitas, encantados com o respeito que ela impõem por onde passa. Já fui menina de correr atrás dos trens que cortavam minha terra. Muitas vezes me adiantei e esperei ele chegar em alguma curva, para acenar sozinha, sem que me vissem, esperando um dia ir com ele. Cachorros assustados, meninos em busca de doces, mulheres largando as roupas nos varais, homens no roçado. Todos pararam o que faziam para simples acenar e sorrir, num ritual fraterno. Presente saudando o passado.

A estrada de ferro aproxima, enfeitiça. Só há aquele caminho. Não há ultrapassagem, não há retorno. Fogo no peito, olhar fixo no horizonte e vontade, muita vontade de chegar. O trem é vivo, parece bicho do mato, tem alma de criança. “Cada maquinista tem seu jeito de puxar o apito. Depende do estado de espírito de cada um, do recado que queira dar”, me diz meu companheiro de viagem.

Na tarde, que terminou num desembarcar na estação de Tubarão, meu grito ganhou o canto do trem, rasgou os caminhos com um apito longo e avisou ao mundo inteiro que meu sonho foi o maquinista daquele passeio. Deixei a criança que ainda insiste em me conduzir, encontrar o seu tempo, o seu espaço. Fui feliz.
*Foto minha feita no dia do passeio.