Um dedo de prosa
Germana Telles
O apito do trem | 02:04 |
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Desde criança eu quis experimentar. Era sonho fácil, daqueles que a gente desenha, cena por cena, como será na hora em que se fizer real. Mas a vida correu e fui deixando para depois, já imaginando que teria que deixá-lo. O que me incomodava era a certeza de que eu gostaria. Eu já gostava, para ser franca. Sabe aquelas frutas que você nunca comeu e sabe que têm sabor inconfundível? Aquele lugar que você nunca foi e mesmo assim chega a se emocionar só em pensar nele? Assim era minha relação com os trens.
Até que, numa tarde comum de trabalho, fui informada de que faria uma matéria sobre um breve passeio _ entre Imbituba e Tubarão.
Euforia contida, acordei cedo e peguei a carona que me levaria até a estação. Esperei o grupo que estaria comigo na viagem, contando os segundos, ansiosa. Embarcamos no início de uma tarde iluminada, com um sol escancarado fazendo festa, abrindo os caminhos.
Euforia contida, acordei cedo e peguei a carona que me levaria até a estação. Esperei o grupo que estaria comigo na viagem, contando os segundos, ansiosa. Embarcamos no início de uma tarde iluminada, com um sol escancarado fazendo festa, abrindo os caminhos.
Olhei a locomotiva, ensaiei passos trôpegos sobre os trilhos, fiz reverência silenciosa. Tentei ouvir o coração da velha máquina. Ela parecia me olhar, desafiadora. Sentia sua respiração, seus olhos fixos na linha reta que teria que vencer. Portas abertas, toquei de leve o vagão e subi. Embarque feito, encantamento de criança.
Fechando os olhos eu seria capaz de rever todas as pessoas que já estiveram ali. Todas as idas e vindas, felizes, desesperadas, tristes, solitárias. Quantas expectativas encheram aquele corpo de madeira, impecavelmente arrumado para receber seus ilustres convidados. Dia após dia.
Lembrei o velho poeta Ascenso Ferreira e seu “vou danado pra Catende com vontade de chegar...”. Sentei e abri as janelas. O peito deu um salto. Avisando que partiria, num choro doído, ela mostrou valentia e soltou fumaça pelas ventas. “Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar...”
Lembrei o velho poeta Ascenso Ferreira e seu “vou danado pra Catende com vontade de chegar...”. Sentei e abri as janelas. O peito deu um salto. Avisando que partiria, num choro doído, ela mostrou valentia e soltou fumaça pelas ventas. “Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar...”
E lá fomos nós, entre o mar e pequenos montes, estradas largas e estreitas, encantados com o respeito que ela impõem por onde passa. Já fui menina de correr atrás dos trens que cortavam minha terra. Muitas vezes me adiantei e esperei ele chegar em alguma curva, para acenar sozinha, sem que me vissem, esperando um dia ir com ele. Cachorros assustados, meninos em busca de doces, mulheres largando as roupas nos varais, homens no roçado. Todos pararam o que faziam para simples acenar e sorrir, num ritual fraterno. Presente saudando o passado.
A estrada de ferro aproxima, enfeitiça. Só há aquele caminho. Não há ultrapassagem, não há retorno. Fogo no peito, olhar fixo no horizonte e vontade, muita vontade de chegar. O trem é vivo, parece bicho do mato, tem alma de criança. “Cada maquinista tem seu jeito de puxar o apito. Depende do estado de espírito de cada um, do recado que queira dar”, me diz meu companheiro de viagem.
Na tarde, que terminou num desembarcar na estação de Tubarão, meu grito ganhou o canto do trem, rasgou os caminhos com um apito longo e avisou ao mundo inteiro que meu sonho foi o maquinista daquele passeio. Deixei a criança que ainda insiste em me conduzir, encontrar o seu tempo, o seu espaço. Fui feliz.
*Foto minha feita no dia do passeio.
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