Um dedo de prosa

Germana Telles

Calor em noite fria 12:59

A noite era fria, mas fria mesmo, daquelas de fazer o cristão pensar que os ossos estavam prontos para se despedaçarem. O cansaço, portanto, era dobrado. Acostumada aos quarenta graus a pino sobre a cabeça, a sensação era ainda mais forte para mim. Cheguei em casa, fechei janelas e portas, liguei o chuveiro na temperatura mais quente possível e esperei a casa inteira _ que não era mais que uma caixinha de fósforos _ virar sauna.
 
E então, o toque inconfundível do celular me despertou do quase êxtase de me sentir aquecida novamente. Quando já me preparava para desfrutar do jato quente, fui obrigada a largar tudo e correr para o quarto. Até achar o bendito telefone, pensei que sofreria um choque térmico, partiria mesmo ao meio e passaria dessa para melhor.
 
Pressa e irritação ao atender a chamada. Silêncio do lado de lá e, em seguida, o barulhinho chato de ligação finda. Humor beirando o caos. Nervos à flor da pele. A caminho do chuveiro, toca de novo o telefone. A recepção já não foi a mesma e eu queria realmente que o ser insistente do outro lado percebesse que eu estava para poucos amigos.
 
Enfim, ouço a respiração ofegante do lado de lá, com a voz infantil, inconfundível, vinda de tão longe. “Titia?”. Coração aos saltos. Entre as minhas declarações de amor, saudade e indagações sobre onde ela estaria, com quem e o que queria, mais uma vez o silêncio e a respiração de quem está mesmo fazendo algo errado.
 
Insisti nas perguntas. “Estou em casa. Não fui eu que liguei. Apertei no botão verde e você me ligou de volta, tia”. Entendi o porquê da respiração acelerada e sorri. A ligação era clandestina e me trazia a paz considerada impossível minutos antes. Como aquela menininha, com apenas seis anos de vida, tinha tanto poder sobre mim? Como era capaz de me fazer tão bem e domar todas as minhas inquietações assim?
 
Tentei falar, com mais calma dessa vez, com toda a doçura do mundo. Busquei as melhores palavras, as mais lindas, as mais fáceis. E quis prolongar aqueles segundos pela vida toda. Ela interrompeu quando eu ainda elaborava a primeira frase: “Eita, mamãe está vindo... Tô acabando com os créditos dela... Vou desligar”. A confissão, feita num quase sussurro, me arrancou a melhor gargalhada e dizimou, num sopapo, todas as atribulações acumuladas durante o dia. Era mesmo uma ligação clandestina, das boas. O barulhinho do telefone dessa vez fez carinho, tomou conta de mim e foi se misturando à batucadinha no peito. Já não sabia se o calor que me tomava naquele instante era do quarto cheio de fumaça ou se a noite havia decidido me mandar a receita certa para recobrar a serenidade e o bem-estar.
 
Entrei no chuveiro com um sorriso colado no rosto. Fui dormir aquecida, com a sensação de que o mundo inteiro ao meu redor havia vencido o frio e descansava em paz.

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