Um dedo de prosa

Germana Telles

O circo 13:08

Tarde calma, com os segundos atravessados em meio aos ponteiros mais poderosos do relógio. Maresia embalando o vento, encrespando os cabelos dos coqueiros, assanhando a areia. Paralelepípedos sobrevivendo ao fogo da terra. E tudo bendizendo a rotina do vilarejo. 

Em meio às cores simples do cenário, de repente o alto-falante anunciava a chegada da festa.  

Largávamos as tranças das redes, que surgiam das mãos de "Seu" Marinho _ velho pescador, exímio conhecedor dos segredos do mundo. Em dias assim, éramos seus ajudantes, aprendizes de redeiros, entre as muitas descobertas das férias. Mas nada seria mais interessante que aquele anúncio, às quatro da tarde. "Hoje tem espetáculo? Tem, sim senhor!".  

Molecada solta, com chinelos gastos nos pés, arrastando carrinhos de latões, puxados com barbantes. Meninos e meninas de todos os tipos e tamanhos. Loiros, mulatos, cafuzos. Pequeninos, graúdos, barrigudos, bem cuidados. Em São José da Coroa Grande as diferenças eram esquecidas. E, afinal, éramos crianças. Criança vê melhor o que importa nessa vida. Amizade independia de cor, credo, cara limpa, suja ou sapatos engraxados. Valiam mesmo a camaradagem, as criações mirabolantes, a partilha de tudo _ dos piões de madeira à bicicleta ganha no Natal.  

O grupo se avolumava a cada esquina. Eu e meus irmãos nos jogávamos no meio da farra. Quem engrossasse o canto do palhaço ganhava balas e balões coloridos. Pois bem, enchíamos a rua de gritos desafinados e os bolsos de guloseimas. Carnaval desfilando no peito.  

Atrás do bloco, carros cambaleando, carregados de bailarinas com roupas desbotadas, maquiagem pobre, purpurina fingindo ser ouro em saias de tule amarelado. Cachorros, macacos, leões cansados. Música desencontrada. Tubas, cornetas, tambores... e nós. Finda a exibição no passeio público, voltávamos correndo para casa. Era preciso garantir o ingresso.  
Roupa nova, passada sobre a cama, imaginação prestes a escapar, sem destino e sem volta. 

À entrada do espetáculo, pipoca, maçãs carameladas, algodão-doce. Entre os mil furos da lona amarela e azul surgiam estrelas, geradas pelos refletores. Dentro, armações de ferro e madeira separando o palco do público.  

Não lembro de algo me extasiar mais do que aquelas noites no circo. Todos os portais da fantasia se abriam à nossa frente. Mergulhávamos sem medo, esquecidos que o mundo lá fora nos esperava, com pressa e cheio de planos para nos fazer adultos.  

O encanto foi tão forte que permanece comigo, na caixinha das melhores lembranças. Trago a festa bem guardada, onde o tempo não pode tocar. Sempre que preciso, lanço mão da velha cantoria, me cubro de cores, me jogo no mundo e transformo a vida em espetáculo.

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