Um dedo de prosa
Germana Telles
Meninos pagãos | 13:20 |
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Histórias que a gente ouve na infância ficam. Não tem jeito. Principalmente se o narrador é dos bons, daqueles que inventam vozes, recheiam as falas com sonoplastia digna dos melhores filmes de suspense e gesticulam como se vivessem a cena.
Eu tive bons narradores, dos melhores mesmo, nos primeiros anos da minha vida. E eles sabiam que eram, mesmo não tendo plena consciência das técnicas usadas. Caprichavam, rebuscavam efeitos e nos impressionavam de verdade. Deles ficaram também as lendas, os cuidados, os medos.
Pois bem, sei que se quebrar o espelho do meu quarto não terei sete anos de azar. No entanto, torço para que não aconteça. Sei também que se tomar banho depois do almoço não vou entortar sem conserto, mas... Se fizer careta e o galo cantar, se passar embaixo de uma escada, se comer manga e tomar leite, se comer melancia depois das seis da tarde, se cruzar uma encruzilhada...
Tudo isso é coisa besta, história pra boi dormir, mas eu não vou teimar com quem já viveu mais do que eu. Não mesmo.
Então, uma das histórias que mais me meteram medo e que até hoje me rouba o sono só de lembrar é a dos meninos pagãos. Reza a lenda, lá nos confins de São José da Coroa Grande, que se uma criança morre pagã jamais deixa de assombrar a casa, até que se faça um batismo simbólico e a torne cristã.
Perto da minha casa havia enorme castanholeira, onde os meninos pagãos vinham chorar sempre que morria mais um na cidade. Sob essa árvore eram realizados os batismos.
A estranha cerimônia era bonita de se ver. Mulheres vestiam branco, misturavam candomblé com orações cristãs, dançavam, se banhavam com sal e flores e ofereciam suas preces pelos anjinhos.
Chegávamos a ouvir o choro _ que na verdade era uma cuíca qualquer tocada entre os atabaques e os gemidos das mulheres _ e todos os fios de cabelos se arrepiavam.
Não sei onde foram parar os meninos pagãos, que hoje não choram mais, já que a árvore foi cortada para dar lugar ao asfalto. Não sei onde estão aquelas mulheres, seus atabaques, orações e cuícas.
Sei apenas que as histórias, os costumes e força daquela gente ficaram em mim. Para sempre.
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