Um dedo de prosa

Germana Telles

Manga com leite 13:10

Misturar manga com leite pode fazer mal. Assim como tomar banho depois do almoço, lavar cabelo em noite de lua cheia, vestir a roupa pelo lado avesso. Crendices que regem a vida e vão nos ensinando, sob o carinho das mães e avós, a ter limites. Demorei a tomar manga com leite e ainda hoje vou guiando meus passos segundo o que me ensinaram em casa.

Por via das dúvidas, por exemplo, não corto encruzilhadas, não passo embaixo de escadas, não vou nadar depois do almoço. Se uma coruja pia perto de casa, bato na madeira, peço proteção aos céus. Se alguém engasga, apelo para São Braz, levanto os braços e acredito ter salvado a vida do cristão afogado. Tem coisas que são assim, não saem de nós e vão moldando nosso caráter, desenhando nosso destino.

Entre as coisas que ficaram em mim, grudadas entre a pele e a alma, está o meu modo de olhar o ser humano. E, falando muito sério, não consigo achar que um carro do ano possa valer mais do que um bom amigo. Não consigo entender como há quem meça o valor de gente como quem põe preço num saco de farinha.

Dia desses, lá em casa, me falaram que preciso ter mais ambição nessa vida. Que o mundo não gosta de quem gosta do mundo. Eu não sei não. Prefiro mesmo apostar no que me ensinaram. Eu gosto de gostar das pessoas. Claro que não é qualquer um que atravessa minha intimidade. Dou preferência a quem me encara e me enxerga. Compro briga por quem tem os pés no chão e conhece a textura da areia fina. Argumentando com a pessoa que tentava me dar mais rumo na vida, contei a história de Maria e seus sapatos finos.

Ela colecionava mais de oitenta pares. Botas, sandálias, tênis, altos, baixos, pretos, brancos, coloridos... Tinha um orgulho, a moça, de seus sapatinhos... Um dia, olhou meus pés e queixou-se do meu velho tênis esfolado. Mas ele está em meus pés, criatura! O que te incomoda? "Não parece com você e não vai lhe levar a lugar algum", argumentou. Não tentei lhe dizer o que pensei, naquele momento. Palavras ao vento, apenas.

Voltei para casa tentando entender como alguém poderia viver assim: num relacionamento apaixonado com oitenta pares de sapatos. Eu, com meu tênis surrado, andei em mil estradas, fiz mil amigos e estiquei minha história. Ela não pisou solo algum além dos limites de seu quarto. Desde aquele dia, não a procurei mais. Não daria certo levar adiante aquele convívio. Somos feitas de massas distintas, moldadas por oleiros bem desiguais. Dei razão à minha mãe, minhas tias e minha avó. Não se deve misturar manga com leite. A mistura pode ser bem ácida e pode fazer mal.

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