Um dedo de prosa
Germana Telles
A descoberta do mundo | 14:40 |
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Eu só queria andar de bicicleta. Esse foi o argumento repetido dezenas de vezes enquanto os adultos me sabatinavam, pediam explicações e me acusavam de quase matar minha mãe do coração. “Menina sem juízo. Quer matar todo mundo de susto?”. Mas eu só queria andar de bicicleta...
Coração desbravador, desde menina, me levava a deixar os adultos completamente desorientados. Meu desejo era ganhar as ruas, dobrar esquinas, ver quem estava do lado de lá. E eu sempre dava um jeito de escapar, de fazer a mochilinha e me jogar. Mesmo quando dentro dela iam bonecas, panelinhas, gibis e bolachas. Aquela foi a primeira fuga. Esperei que todos fossem se ocupar de suas coisas e aprontei minha lancheira. Ouvi as recomendações de minha mãe à minha prima Tereza, que me cuidaria por algumas horas, e fiz meu papel de anjinho.
Prometi obediência e me plantei em frente à televisão. Bastaram alguns instantes de distração e driblei Tereza. Corri ao portão, sentei na calçada e esperei. Todos os dias o padeiro passava de bicicleta, entregando as encomendas da vizinhança. O cesto enorme me chamava. Eu queria ir com ele, entregar pão, ganhar sorrisos e conhecer toda a cidade. Ouvi a sineta da bicicleta ao longe e me preparei.
Conferi se ainda não haviam dado por minha falta e acenei. Ele parou. “Sua mãe não pediu pão hoje”. Nem esperei mais nada. “Me leva com você pra passear? Eu pedi e já deixaram”. Quem poderia prever que aquele anjinho de candura estaria faltando com a verdade? Também não havia como imaginar que o padeiro fosse levar uma criança que pede carona na calçada, agarrada a uma lancheira.
Encontro de impossibilidades com a sorte e em segundos eu já estava entre sacos de pão, dentro do cesto de entrega. Foi a viagem dos sonhos. Vendo minha satisfação, ele aumentava as pedaladas e sorria. Fiquei responsável pela entrega. Parávamos, eu teria que dar boa tarde, deixar o embrulho e desejar boa refeição à família.
Criança aprende rápido. Assim, fui a mais eficiente das ajudantes de padeiro das redondezas. E a mais feliz também. No fim da tarde o frio do sertão chega a doer. Serração caindo, hora de ir para casa. “Me deixa na esquina”, pedi. Desci e assim que ganhei nossa calçada percebi o tamanho da encrenca que me esperava.
Carro de polícia, ambulância e praticamente a cidade inteira no portão de minha casa. “Olha ela alí!”. Eu realmente estava em apuros. Pensei em correr, voltar pro cesto do pão, ganhar o mundo e nunca mais voltar. Foi quando vi Tereza, aos prantos, vindo ao meu encontro. Não fui castigada como pensei. Só ganhei abraço apertado e ouvi preces de agradecimento a todos os santos e anjos. Burburinho dos vizinhos crescia a cada tentativa de explicação minha. Pai e irmãos tentando acalmar minha mãe, que ainda não acreditava que eu estava em casa e sem um arranhão. “Eu só queria andar de bicicleta”, repeti.
Queriam mandar prender o padeiro, saber por onde ele havia me levado, fizeram mal juízo do moço, foi um Deus-nos-acuda. Chorei, roguei, contei da maravilhosa aventura dentro do cesto do pão, assumi a culpa. Mesmo assim, o rapaz foi interrogado. No fim, tudo foi esclarecido e no dia seguinte não vi mais a bicicleta passar. Nem no outro, nem qualquer outro dia.
Deixamos a serra alguns anos depois e nunca mais voltei por lá. Queria dobrar novamente aquelas ruas, passar pelo portão, pela calçada que viu minha estréia na descoberta do mundo.
Sou uma apaixonada por gente, por esquinas, por estradas. Adoro vencer as impossibilidades e me lançar à sorte que a vida oferece. Foi assim que ganhei os melhores amigos que alguém pode ter. Assim pude desfrutar de lugares, saborear sotaques e pratos fartos. Aprendi, dentro de um cesto de pão, a bater à porta, deixar algo de bom com quem me recebe e desejar bonança aos que me dão sorrisos.
Coração desbravador, desde menina, me levava a deixar os adultos completamente desorientados. Meu desejo era ganhar as ruas, dobrar esquinas, ver quem estava do lado de lá. E eu sempre dava um jeito de escapar, de fazer a mochilinha e me jogar. Mesmo quando dentro dela iam bonecas, panelinhas, gibis e bolachas. Aquela foi a primeira fuga. Esperei que todos fossem se ocupar de suas coisas e aprontei minha lancheira. Ouvi as recomendações de minha mãe à minha prima Tereza, que me cuidaria por algumas horas, e fiz meu papel de anjinho.
Prometi obediência e me plantei em frente à televisão. Bastaram alguns instantes de distração e driblei Tereza. Corri ao portão, sentei na calçada e esperei. Todos os dias o padeiro passava de bicicleta, entregando as encomendas da vizinhança. O cesto enorme me chamava. Eu queria ir com ele, entregar pão, ganhar sorrisos e conhecer toda a cidade. Ouvi a sineta da bicicleta ao longe e me preparei.
Conferi se ainda não haviam dado por minha falta e acenei. Ele parou. “Sua mãe não pediu pão hoje”. Nem esperei mais nada. “Me leva com você pra passear? Eu pedi e já deixaram”. Quem poderia prever que aquele anjinho de candura estaria faltando com a verdade? Também não havia como imaginar que o padeiro fosse levar uma criança que pede carona na calçada, agarrada a uma lancheira.
Encontro de impossibilidades com a sorte e em segundos eu já estava entre sacos de pão, dentro do cesto de entrega. Foi a viagem dos sonhos. Vendo minha satisfação, ele aumentava as pedaladas e sorria. Fiquei responsável pela entrega. Parávamos, eu teria que dar boa tarde, deixar o embrulho e desejar boa refeição à família.
Criança aprende rápido. Assim, fui a mais eficiente das ajudantes de padeiro das redondezas. E a mais feliz também. No fim da tarde o frio do sertão chega a doer. Serração caindo, hora de ir para casa. “Me deixa na esquina”, pedi. Desci e assim que ganhei nossa calçada percebi o tamanho da encrenca que me esperava.
Carro de polícia, ambulância e praticamente a cidade inteira no portão de minha casa. “Olha ela alí!”. Eu realmente estava em apuros. Pensei em correr, voltar pro cesto do pão, ganhar o mundo e nunca mais voltar. Foi quando vi Tereza, aos prantos, vindo ao meu encontro. Não fui castigada como pensei. Só ganhei abraço apertado e ouvi preces de agradecimento a todos os santos e anjos. Burburinho dos vizinhos crescia a cada tentativa de explicação minha. Pai e irmãos tentando acalmar minha mãe, que ainda não acreditava que eu estava em casa e sem um arranhão. “Eu só queria andar de bicicleta”, repeti.
Queriam mandar prender o padeiro, saber por onde ele havia me levado, fizeram mal juízo do moço, foi um Deus-nos-acuda. Chorei, roguei, contei da maravilhosa aventura dentro do cesto do pão, assumi a culpa. Mesmo assim, o rapaz foi interrogado. No fim, tudo foi esclarecido e no dia seguinte não vi mais a bicicleta passar. Nem no outro, nem qualquer outro dia.
Deixamos a serra alguns anos depois e nunca mais voltei por lá. Queria dobrar novamente aquelas ruas, passar pelo portão, pela calçada que viu minha estréia na descoberta do mundo.
Sou uma apaixonada por gente, por esquinas, por estradas. Adoro vencer as impossibilidades e me lançar à sorte que a vida oferece. Foi assim que ganhei os melhores amigos que alguém pode ter. Assim pude desfrutar de lugares, saborear sotaques e pratos fartos. Aprendi, dentro de um cesto de pão, a bater à porta, deixar algo de bom com quem me recebe e desejar bonança aos que me dão sorrisos.
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2 comentários:
Olá, Germana!
É uma alegria estar linkada aqui :) Obrigada.
Como escreves bem! Além de identificar-me com os teus sentimentos, consigo plenamente visualizar os eventos. Lindo mesmo.
Já estás em Ítaca também.
Beijos, até.
GermanoUna!
Você é uma delícia de escritora e eu, grande fã.
Brindemos à tua vocação!
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