Um dedo de prosa
Germana Telles
Coração | 14:26 |
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Aquelas portas exerciam fascínio. Éramos nós ali, num constante exercício de domínio, medo e sedução. Eu e as duas portas de correr. Elas: pesadas, de madeira nobre, verniz escuro, envelhecidas. Eu: medindo talvez menos de meio metro, franzina, cinco anos de idade. A casa inteira parecia dar abrigo à festa diária de cheiros vindos da cozinha, vozes infantis e adultas povoando paredes, jardim, móveis, fotografias, lençóis, janelas e muros. Tudo tinha a mão da liberdade desenhando aquele lugar. Mas, por trás daquelas portas, um mundo estranho e ao mesmo tempo encantador parecia se esconder de mim, ser proibido. Não que o fosse. Meu pai jamais as deixou trancadas. Tínhamos passe livre. Eu é que me sentia intimidada por não ser capaz de decifrar o segredo escondido.
Inúmeras vezes vi meu pai entrar ali com minha mãe, irmãos mais velhos e amigos que visitavam nossa casa. Ali - parada nalgum canto, à espreita - eu espiava rapidamente estantes da mesma madeira das portas, livros de cores, texturas e tamanhos diversos. Todas as paredes tinham livros, que cresciam até o teto e depois dele. De onde eu estava, em meu meio metro, a impressão é que eles poderiam atravessar o telhado e tocar as nuvens. E pareciam ter também olhos, bocas e ouvidos. No centro daquela sala gigante, mesa perfeitamente lustrada e cadeira forrada com couro de cabra. No chão, tapete de veludo, cor de vinho. Era ali que eu queria ficar.
Meus cinco anos, no entanto, me empurravam para as bonecas, a rua e o velocípede de metal amarelo e azul. Um dia, porém, resolvi arriscar e invadir o mundo estranho. Entrei, sorrateira, enquanto todos dormiam. Busquei o livro ao alcance de minhas mãos pequenas. Escalei a cadeira com couro de cabra, abri a primeira página e esperei que a mágica acontecesse. Nada.
Nenhuma folha lá fora se mexeu, o vento não abriu as janelas, nenhuma voz, nenhum som. Fiquei esperando, até adormecer. Fui acordada quando meu pai já me colocava na cama. “Não consegui”, reclamei, antes de voltar a dormir. Não sei se ele entendeu, ouviu ou respondeu.
Não desisti. Continuei indo à biblioteca. Sentava ao lado de meu pai, meus irmãos, e folheava os livros – no sonho vão de traduzir os sinais impressos. Meses depois da primeira tentativa, finalmente aprendi a ler. Fui tropeçando, esquecendo a pontuação, querendo devorar as palavras.
Precisava descobrir a senha que me levasse àquele encanto. No dia em que entrei de férias na escola, meu pai me deu uma boneca de pano – perdida numa de nossas mudanças – e o embrulho, em papel-madeira. Abri e lá estava ele: o livro que peguei na estante, quando tentei entrar à força no mundo encantado. Sem que nenhuma folha mexesse, janelas fossem abertas ou vozes ordenassem a magia, eu joguei o nome no ar: “Coração”. Pronto. Estava feito. O encanto foi quebrado.
Guardo comigo até hoje o livro, editado em 1923 – quando meu pai tinha 12 anos – que conta a história de um menino europeu descobrindo as armadilhas e encantos do sentimento humano, no final do século dezenove. Através do amor e da imensa sabedoria de meu velho pai, entrei no mundo da leitura pela porta da frente, com o Coração nas mãos e a alma em festa.
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