Um dedo de prosa

Germana Telles

Entre a terra e as estrelas 14:33

Naquele ano nós decidimos não fazer grande ceia no Natal. Por motivos nossos, meus pais nos consultaram sobre o que pensávamos e concordamos com eles. Nostalgia imperando em casa, comemos cedo, vimos a programação da televisão e nos rendemos aos pijamas antes das dez badaladas noturnas.


Sabia que a praça estaria cheia àquela hora, para a celebração da Missa do Galo. E o grupo de sempre estaria desfilando as roupas novas, festejando os presentes e as férias de verão. Eu sabia e queria também estar lá, mas como nos anos anteriores, feliz. Não fui. E deitei para dormir depressa.


Entre o primeiro e o segundo sono, pedrinhas na janela incomodaram. Tentei ignorar. Mais e mais pedrinhas. Chuva de pedras.

Quase ganho cicatriz na testa. O coro desafinado mais lindo que já vi, entoando um Noite Feliz partido em risadas. Eram eles. Todos juntos, vestidos de festa, vindo me buscar.


Aquele foi um dos mais felizes entre tantos natais. Vesti rápido a roupa nova, pedi a bênção e ganhei a rua com eles. Onde passávamos, cantávamos juntos. E a fonte que fazia jorrar sorrisos era inesgotável. Nunca vi tanto assunto, tanta fome de alegria, tanta gana de ser e fazer feliz.


Éramos 15 aprendizes do destino, ligados pela amizade que unia nossos pais e pela força que nos juntava, em qualquer circunstância da vida.

Naquela noite, fomos à missa, lotamos a pizzaria, visitamos conhecidos e decidimos terminar nossa festa na praia. Jogamos futebol e caímos no mar, encharcando as roupas novas com água salgada, para o desespero de nossas mães.


Para mim, mesmo depois de 20 anos, nada abalaria aqueles meninos e meninas _ que supunha viverem guardados num espaço alternativo, mantendo intactos os sorrisos, a ingenuidade e a vida plena, sem máculas, sem riscos, sem fim.


Seríamos eternos, naquelas ruas de paralelepípedos. Não deixaríamos de passar embaixo dos castanheiros, com pressa e medo de assombração. Teríamos todos os caminhos abertos ao nosso desejo de ganhar o mundo. Nossas casas conservariam o tom da tinta fresca, renovada a cada fim de ano. Nossas portas ficariam sempre abertas, esperando os amigos. Nossos pais sempre estariam deitados, à nossa espera, nos fins de noite. Aniversários, natais, carnavais, páscoas, bailes, festas de ruas, batizados. Tudo seria eterno, naquele arruado de interior.


Lembrei desse Natal, em pleno mês de março, porque essa semana recebi a notícia de que nosso grupo começou a se partir. A ciranda perfeita perdeu um par de mãos e metade da alegria com a despedida de alguém.


Fomos pegos de surpresa e tomamos ciência: não somos imortais. Alguém vai embora aos 39 do primeiro tempo, sim. Alguém que incendiava os dias com energia intensa. Que nos puxava e nos levantava do chão, se ensaiássemos um tombo.


Podem dizer que ela foi embora, que não volta mais, que não terei mais pedrinhas na janela nem gargalhada brincando na rua. Eu sei que terei. Porque tenho certeza de que aqueles meninos e meninas hão de viver para sempre, nos anos guardados pelos anjos, nalgum lugar entre a terra e as estrelas.

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