Um dedo de prosa

Germana Telles

Bicho-papão 15:31

Ela era criança normal, dizem. Aprontava travessuras, brincava com panelinhas de barro, costurava roupinhas de bonecas para suas espigas de milho, se banhava no açude, era feliz.
Tudo isso são coisas que os pais dos meus pais contaram, passaram às crianças que eles foram um dia e de lá, nos trouxeram a herança. Cada relato envolvendo a pobre moça _ que um dia ousou passar da conta nas malcriações com a mãe e teve como castigo a maldição de virar cabra nas noites de lua cheia _ vinha em três dimensões. Interjeições, falas cansadas do narrador temeroso, nos faziam tremer e querer nos aproximar dos anjinhos de candura pintados na capela do vilarejo distante.
Dizem que tudo começou quando ela se viu completamene rendida aos encantos de um jovem, recém-chegado, de férias dos seus estudos na capital. Filho do dono da única mercearia nas redondezas, onde de tudo se encontrava.
Moço rico, cheio de vontades estranhas, de modos esquisitos e que, diferente da maioria dos moleques que andavam pela vila, não usava bigode e ainda ostentava cavanhaque curtinho, enfeitando o queixo quadrado.
Num final de tarde, foi comprar o que faltava para a ceia _ costume dos mais velhos, que não iam dormir sem antes saborear um “quase banquete”, servido às oito da noite, regado a bom trago (para os homens) e chá de ervas (para as mulheres).
Paixão instantânea, fulminante. Era dele todo o amor que havia guardado. Não haveria outro.
O moço, completamente desinteressado, não se fez de rogado, porém. Aceitou a ingenuidade da jovem e, em troca, lhe deu enganos e desprezo. “Caiu na boca do povo, caiu na boca do povo”, foi a sentença em cada esquina.
Mãe viúva, desesperada, pôs a “perdida” de castigo, trancafiada em casa, e a proibiu de voltar a encontrar o enganador, que não tardou em escapolir da vila, com medo de ser obrigado a pagar pelo “mal feito”. Apaixonada, a filha desafiou a autoridade materna e levantou as mãos àquela que lhe dera à luz. O castigo veio a cavalo - ou melhor, em uma cabra, que lhe tomava o corpo nas noites em que a Terra encarava a lua.
Pior: a moça ganhava asas escuras _ tipo ave de rapina _ e rasgava o sereno da madrugada com seus gemidos altos, causando arrepios até nos mais incrédulos. Nunca mais amou, nunca mais pôde voltar, a “Cabra alada”. Perambulava na mata, viveu não se sabe como nem até quando. “Talvez pra sempre, na solidão dos ingratos”, refletiam os mais velhos.
Toda essa contação nos era repetida, sempre que alguém ousava desrespeitar os mais velhos ou tentar desafiar a autoridade dos pais. Funcionava que era uma beleza e ninguém precisava de lei impressa para que o respeito se estabelecesse. Tudo era feito na base da confiança, dos causos ingênuos, da cumplicidade e da partilha.
Palavra dos mais velhos era a própria lei. Bichos-papões iam embora quando a criança dava lugar ao adulto e as histórias de cabras aladas ficavam entre as boas lembranças dos tempos de meninos e meninas, criados com amor.

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