Um dedo de prosa

Germana Telles

A fábrica 11:17

Sabíamos que aquele lugar deveria guardar muitos mistérios. Isso já nos bastava para sentirmos desejo enorme de vencermos a montanha que não parava de crescer e gerar filhotes, dentro dos muros de tijolos à vista, escurecidos pela fuligem e pelo tapete de musgos.
 
Não tínhamos a menor ideia de como nem quando fazer, mas faríamos, mais cedo ou mais tarde. Encasquetamos com aquilo e estudávamos secretamente as possibilidades de driblarmos o vigia, os funcionários e o gerente _ que era nosso vizinho e sempre parecia enfurecido, pronto para nos manter distantes, com um belo pontapé no traseiro.
 
Era melhor não arriscar enquanto as máquinas funcionavam, pensava, já que eles estariam circulando pelos corredores e nos teriam como presas fáceis, a um palmo das garras afiadas. Fui convencida do contrário pelo resto do grupo: o barulho das máquinas estaria a nosso favor. Poderíamos pular o muro sem nos fazer notar e mesmo que desmontássemos o mundo, eles não ouviriam.
 
Meu sonho era deitar e rolar naquela montanha de fibras _ extraídas dos cocos secos, maior riqueza da cidade. Dali, as fibras eram jogadas nas máquinas, limpas e depois transformadas em cordas, enviadas aos mais longínquos recantos. Antes disso, bem que poderiam nos servir de brinquedo.
No final de uma tarde morna, quando o sol tentava a todo custo vencer o nublado de julho, corremos feito loucos atrás de tanajuras, entrando e saindo de quintais, pulando poças, rodeando a fábrica.
 
A tentação nos venceu e começamos a escalada. Largamos as latas (carregadas de formigas cortadeiras), aproveitamos as brechas no muro e caímos no monte de fibras. Subimos e descemos tantas vezes que perdemos a conta. Pulamos, cavamos cavernas, escorregamos e voltamos a subir. Até ouvirmos o grito rouco, lá de dentro: “Traz água! Tem fogo nas máquinas!”.
 
Por um instante pensamos em pular e correr para longe. Mas nos detivemos no desespero dos homens, que pareciam loucos, tentando conter as chamas.
Pegamos nossos latões, nos livramos das tanajuras e viramos formiguinhas _ juntando água do poço e agilizando o trabalho dos funcionários.
Vizinhos foram chegando de todos os lados, apressados em não deixar o fogo chegar ao telhado e se espalhar até as fibras.
 
Não entendíamos totalmente a extensão do problema, mas sabíamos que não podíamos parar de pegar água.
A noite chegou com muita fumaça, cheiro de querosene no ar, mulheres, homens e meninos esgotados. No entanto, aquele dia tinha sido nosso. Éramos, enfim, bem-vindos à fábrica de cordas, já que havíamos ajudado a salvá-la.
 
Foram muitas as tardes em que voltei lá, até que aquela montanha foi me parecendo cada vez menor.
A fábrica ainda existe, no mesmo lugar, produzindo cordas fortes, trançadas pelas mãos calejadas de velhos conhecidos, que um dia foram meninos sonhadores e brincaram comigo de explorar quintais.

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