Um dedo de prosa

Germana Telles

Ela e o mar 11:23

Jamais havia visto algo igual. Entre o sertão e a nova cidade que lhe acolhia, tudo era novidade. Até mesmo as pedras do caminho, a poeira escura, quase molhada, as nuvens _ tão baixas que a impressão que tinha era de ter alcançado as alturas (ou teria o céu descido à terra?).
Os pássaros voavam bem perto do velho caminhão, que levava a família inteira, agregados, mobília, lembranças e os animais, que reclamavam de sede, calor e do sacolejo constante dos pneus carecas na estrada esburacada.
A esperança de que um dia voltariam os mantinha vivos e com forças para suportar a distância, as ausências de quereres e o enfrentamento com os novos costumes, que não lhes dariam arrego: ceder ou desistir e voltar atrás.
Mas voltar para onde? _ pensava a menina, prestes a completar treze anos, ainda amante das bonecas de pano, dos banhos de chuva (quando havia a chuva) em meio à euforia nas ruas, dos doces feitos com água e açúcar, no velho tacho da mãe, incansável madeira, dura de envergar.
Maria só pensava em uma coisa. Martelava, alimentava, acalentava somente aquele sopro bom que lhe haviam dado antes da partida: ela certamente veria o mar. Teria o mar todinho pra si, sem ter medo algum de que um dia ele pudesse ter fim.
“O mar não seca. Finge que vai embora e volta, o tinhoso”, contou Jandira, prima de sua mãe, antes do último dia em casa. E foi falando, quase como quem dizia uma reza, contava segredo, pra que o mundo não soubesse que ela sabia. Mas ela sabia. E foi dizendo: “O mar brinca com os pés da gente, fica manso, fica brabo, fica manso fica brabo... É como se fosse o céu, só que mexe o tempo inteiro e tira a areia debaixo dos pés da gente”.
A menina ia se embalando, pensando no balanço que as palavras tinham e pôde sentir aquilo que lhe diziam ser o mar.
“Tem mar que parece gente. Canta, fala baixinho, sopra coisa boa, sopra coisa ruim. Tem mar que bufa feito a serra, quando cachimba no fim da tarde. Tem mar que só fica ali, quieto, sem se mexer, pronto pra dar o bote. É preciso ter cuidado com o mar. Porque ele às vezes enfeitiça e puxa a gente pra dentro dele. E o mar, o mar não tem cabelo onde a gente possa se agarrar”, contou Jandira.
Aquela romaria lhe veio à mente, como se aliviasse o cansaço da viagem. Até que, de repente o motor ficou calado. Alguém lhe tirou do sono leve e mostrou a casa nova. O mar ainda não estava ali. O encontro ficou para anos mais tarde, quando já tinha marido, filhos e netos. Muitos netos _ nascidos e crescidos de cara para o mar.
Naquela tarde, quase meio século depois da despedida, do adeus a Jandira e ao sertão, ela não esquecia os conselhos e a reza doce que falava do mar. Seu coração sertanejo avisava às crianças, que traziam seus traços e repetiam seus gestos, sorriam, quando ela repetia sem parar: “Voltem! Voltem! O mar não tem cabelo!”.

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