Um dedo de prosa
Germana Telles
Inédito | 04:37 |
comentários (4)
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Era de nome que falavam. Dos nomes das pessoas, dos bichos, das coisas, mas principalmente das pessoas. Ou melhor, do seu nome.
Ele não gostava da escolha, nem poderia, coitado. Danada de decisão do pai, que se abestalhou com uma palavra bonita e jogou no filho, como se fosse marca, para a vida toda.
A moça _ que mal havia chegado da cidade grande e tentava mudar as coisas em meio àquele sertão perdido _ lhe dizia para dar nome ao cachorro da família, que sempre atendia aos assovios, e só.
Ele precisa de um nome, precisa de um nome, dizia a moça. Quem precisava de nome novo era ele, pensava. Onde já se viu batizar o filho de “Inédito”? Alguém, além dele, daquele menino franzino, de andar meio torto, sozinho em meio à caatinga, brincando com um cachorro sem nome, seria Inédito? É claro que não, respondia (antes mesmo de dar chance a outra explicação enfadonha), desconcertado, enfurecido, enquanto chutava o barro do chão.
Acabou se contentando com o “Detinho”, que sua santa mãe providenciou para pôr no lugar do Inédito, que ela não sabia pronunciar. “É muita letra pra um nome só”, dizia entre sorrisos, quase sem dentes.
Pela vontade da mãe, ele seria João, Antônio, Pedro, José. Qualquer nome que coubesse no juízo de um cristão e na boca de quem chamasse. Menos Inédito.
A moça bem que tentava controlar o sorriso. Ria mais pela fúria declarada do menino do que da infelicidade de levar pela vida aquela pecha ou da ingenuidade do pai, que achou fazer um favor à criança com nome lindo daquele.
Pense que no mundo inteiro, só há você. Você foi o primeiro, tentava a moça. E até que aquilo fazia sentido, combinava com a estranheza toda.
Não adiantava. O menino não levantava os olhos. Só batia com força nas pedras, socava o barro vermelho e balançava a cabeça, em negação.
Moça, a senhora tem nome bonito, de princesa _ Maria Amália. Olhe só, que nome mais do lindo! Eu nem ligo mais para o meu, até esqueci dele. Só lembrei agora porque a senhora disse pra dar nome ao cachorro. Mas pra que cachorro precisa de nome? Ele responde no assovio e pronto. Precisa de nome não, declarava, como quem implanta uma lei, a sua lei, naquele lugar _ que mesmo pobre, perdido no meio do mundo, era seu.
O cachorro chegou junto, olhou a criança, cheirou suas mãos e abanou o rabo, pedindo brinquedo, folia, afeto. Sem nome, era mais feliz assim.
A moça desistiu de tentar convencer aquele menino, tão mais forte que ela e tão calejado pela vida. Foi lá dentro da casa, onde ergueria o seu mundo, pegou o instrumento e desandou a tocar.
Sem licença ou despedidas, o menino levantou, assoviou e correu pelo terreiro, com o cachorro sem nome.
Era verdade o que ele dizia. Para que complicar as coisas? Ele era o menino, que brincava com o cachorro, no sertão que era todo seu. Ninguém precisava mudar aquilo, porque daquele jeito tudo corria bem, do modo que eles sabiam, da forma que conheciam o que nunca foi dito, o nome que não se falava: a felicidade.
Ele não gostava da escolha, nem poderia, coitado. Danada de decisão do pai, que se abestalhou com uma palavra bonita e jogou no filho, como se fosse marca, para a vida toda.
A moça _ que mal havia chegado da cidade grande e tentava mudar as coisas em meio àquele sertão perdido _ lhe dizia para dar nome ao cachorro da família, que sempre atendia aos assovios, e só.
Ele precisa de um nome, precisa de um nome, dizia a moça. Quem precisava de nome novo era ele, pensava. Onde já se viu batizar o filho de “Inédito”? Alguém, além dele, daquele menino franzino, de andar meio torto, sozinho em meio à caatinga, brincando com um cachorro sem nome, seria Inédito? É claro que não, respondia (antes mesmo de dar chance a outra explicação enfadonha), desconcertado, enfurecido, enquanto chutava o barro do chão.
Acabou se contentando com o “Detinho”, que sua santa mãe providenciou para pôr no lugar do Inédito, que ela não sabia pronunciar. “É muita letra pra um nome só”, dizia entre sorrisos, quase sem dentes.
Pela vontade da mãe, ele seria João, Antônio, Pedro, José. Qualquer nome que coubesse no juízo de um cristão e na boca de quem chamasse. Menos Inédito.
A moça bem que tentava controlar o sorriso. Ria mais pela fúria declarada do menino do que da infelicidade de levar pela vida aquela pecha ou da ingenuidade do pai, que achou fazer um favor à criança com nome lindo daquele.
Pense que no mundo inteiro, só há você. Você foi o primeiro, tentava a moça. E até que aquilo fazia sentido, combinava com a estranheza toda.
Não adiantava. O menino não levantava os olhos. Só batia com força nas pedras, socava o barro vermelho e balançava a cabeça, em negação.
Moça, a senhora tem nome bonito, de princesa _ Maria Amália. Olhe só, que nome mais do lindo! Eu nem ligo mais para o meu, até esqueci dele. Só lembrei agora porque a senhora disse pra dar nome ao cachorro. Mas pra que cachorro precisa de nome? Ele responde no assovio e pronto. Precisa de nome não, declarava, como quem implanta uma lei, a sua lei, naquele lugar _ que mesmo pobre, perdido no meio do mundo, era seu.
O cachorro chegou junto, olhou a criança, cheirou suas mãos e abanou o rabo, pedindo brinquedo, folia, afeto. Sem nome, era mais feliz assim.
A moça desistiu de tentar convencer aquele menino, tão mais forte que ela e tão calejado pela vida. Foi lá dentro da casa, onde ergueria o seu mundo, pegou o instrumento e desandou a tocar.
Sem licença ou despedidas, o menino levantou, assoviou e correu pelo terreiro, com o cachorro sem nome.
Era verdade o que ele dizia. Para que complicar as coisas? Ele era o menino, que brincava com o cachorro, no sertão que era todo seu. Ninguém precisava mudar aquilo, porque daquele jeito tudo corria bem, do modo que eles sabiam, da forma que conheciam o que nunca foi dito, o nome que não se falava: a felicidade.
Inspiração | 13:54 |
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A força que morava naqueles olhos me deixava sem graça, mas me empurrava para a vida com a certeza de que eu poderia chegar mais perto de Deus, através dela.
Jamais conheci alguém tão grande, tão determinado, tão generoso e desprendido de ambições desmedidas quanto ela. Vivia e renascia todos os dias pelo amor que havia em si e que ela, sem medida, entregava a quem passasse por perto.
A formiguinha ligeira, incansável em sua labuta, acordando todos os dias antes do sol, era a corda que nos amarrava num círculo iluminado de segurança e fé. Sabíamos que com ela, estando ali, dividindo o lar e os dias com ela, seríamos felizes.
Não importavam os obstáculos, as tristezas que vez em quando batiam à nossa porta, as distâncias que precisamos vencer, tantas vezes, em busca de paz. Tudo com ela era bom. E tudo começava e terminava de maneira tão fácil de se levar, com uma simplicidade tão desconcertante, que nos comovia, ao vê-la agarrar a vida com tanta vontade.
Até nos dias piores, _diante da perda do filho, da doença, que lhe roubou o direito de andar, das saudades que ela acumulou em sua estrada _ ela não desdisse a sua fé, a sua força. Eu queria ter aprendido com ela. Era o que eu mais queria. Aquela capacidade de ser gente, de acreditar nas outras gentes que nem sempre mereciam o seu afeto e que sempre, sempre, tinham o seu abraço, o seu sorriso e o seu perdão.
Nem sei se aquilo que ela oferecia era mesmo perdão. Talvez fosse o esquecimento, a falta de registro do lado negativo de qualquer coisa, qualquer pessoa. Sei que queria ter aprendido com ela.
Sou pequena demais, no entanto, e perdi a oportunidade de fazer do meu caminho algo tão melhor. Eu devia ter seguido seus conselhos, ter anotado cada um deles, ter ido dormir na hora que ela falasse, ter respeitado mais o meu tempo, ter aprendido a tocar melhor o piano, ter largado o cigarro, ter prestado atenção aos caminhos que escolhi e que não estavam em seus planos.
Juro que eu não sabia que doeria tanto crescer e ter que tocar a vida sem aquela luz que jorrava em minha volta e me fazia tão feliz. Sei que se pudesse voltar atrás, jamais teria lhe dito um não, jamais teria me atrasado para os almoços de domingo (quando ela sempre estava pronta, sentada na rede, com seu melhor vestido, cabelos bem penteados, olhar ansioso, me esperando chegar).
Queria seus recados em meu celular, sempre dizendo antes quem era (“Minha filha, sou eu, sua mãe”) _ como se eu não soubesse, como se fosse preciso _ me deixando recomendações ou contando algo corriqueiro, que ela fazia especial e repartia conosco, extensões do seu corpo, da sua vida.
Busco, inquieta, outro olhar como aquele, outra voz como aquela, outra luz que me faça feliz como naqueles melhores dias da minha vida. Tenho a fé, que ela me deixou de herança, como guia. Vou, abrindo trilhas. Hei de achar a inspiração que me devolva a capacidade de atravessar a vida com um sorriso nos lábios, o coração leve e as mãos sempre prontas para acolher, sem esperar recompensa.
Jamais conheci alguém tão grande, tão determinado, tão generoso e desprendido de ambições desmedidas quanto ela. Vivia e renascia todos os dias pelo amor que havia em si e que ela, sem medida, entregava a quem passasse por perto.
A formiguinha ligeira, incansável em sua labuta, acordando todos os dias antes do sol, era a corda que nos amarrava num círculo iluminado de segurança e fé. Sabíamos que com ela, estando ali, dividindo o lar e os dias com ela, seríamos felizes.
Não importavam os obstáculos, as tristezas que vez em quando batiam à nossa porta, as distâncias que precisamos vencer, tantas vezes, em busca de paz. Tudo com ela era bom. E tudo começava e terminava de maneira tão fácil de se levar, com uma simplicidade tão desconcertante, que nos comovia, ao vê-la agarrar a vida com tanta vontade.
Até nos dias piores, _diante da perda do filho, da doença, que lhe roubou o direito de andar, das saudades que ela acumulou em sua estrada _ ela não desdisse a sua fé, a sua força. Eu queria ter aprendido com ela. Era o que eu mais queria. Aquela capacidade de ser gente, de acreditar nas outras gentes que nem sempre mereciam o seu afeto e que sempre, sempre, tinham o seu abraço, o seu sorriso e o seu perdão.
Nem sei se aquilo que ela oferecia era mesmo perdão. Talvez fosse o esquecimento, a falta de registro do lado negativo de qualquer coisa, qualquer pessoa. Sei que queria ter aprendido com ela.
Sou pequena demais, no entanto, e perdi a oportunidade de fazer do meu caminho algo tão melhor. Eu devia ter seguido seus conselhos, ter anotado cada um deles, ter ido dormir na hora que ela falasse, ter respeitado mais o meu tempo, ter aprendido a tocar melhor o piano, ter largado o cigarro, ter prestado atenção aos caminhos que escolhi e que não estavam em seus planos.
Juro que eu não sabia que doeria tanto crescer e ter que tocar a vida sem aquela luz que jorrava em minha volta e me fazia tão feliz. Sei que se pudesse voltar atrás, jamais teria lhe dito um não, jamais teria me atrasado para os almoços de domingo (quando ela sempre estava pronta, sentada na rede, com seu melhor vestido, cabelos bem penteados, olhar ansioso, me esperando chegar).
Queria seus recados em meu celular, sempre dizendo antes quem era (“Minha filha, sou eu, sua mãe”) _ como se eu não soubesse, como se fosse preciso _ me deixando recomendações ou contando algo corriqueiro, que ela fazia especial e repartia conosco, extensões do seu corpo, da sua vida.
Busco, inquieta, outro olhar como aquele, outra voz como aquela, outra luz que me faça feliz como naqueles melhores dias da minha vida. Tenho a fé, que ela me deixou de herança, como guia. Vou, abrindo trilhas. Hei de achar a inspiração que me devolva a capacidade de atravessar a vida com um sorriso nos lábios, o coração leve e as mãos sempre prontas para acolher, sem esperar recompensa.
Por que? | 11:58 |
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É engraçado como a gente vai mudando os conceitos, à medida que o tempo passa. Temos fases, como a lua (como diria a Cecília), e tudo começa na idade do por que (?).
Acabo de constatar isso, conversando com amiga, que está na fase do “mais ou menos”, “sei lá” e “pode ser”. Fase chata, já adianto, para aqueles que certamente também deverão experimentá-la.
No por que, tudo é novidade. A gente está como brinquedo novo, que acabou de sair da caixa, olhando tudo em volta com olhos de descobridor. Por isso, não nos aguentamos em meio a tantos rostos desconhecidos, tantos lugares novos, tanto mistério. Desandamos a mandar por ques pra tudo quanto é lado, irritamos pais, tios e irmãos, mas vale a pena.
É por uma boa causa que vivemos as interrogações: para que possamos começar a experimentar a vida. Bom lembrar: nunca devemos nos esquivar dos por ques dos pequenos. Nada de dizer “porque sim”, “porque não”, “porque é assim e pronto”, quando surgirem aquelas perguntinhas básicas: “Mãe, por que a Terra gira e eu não fico tonto?” ou “Por que eu não posso pular da janela?” ou ainda “Por que aquela criança mora na rua e eu tenho um quarto só pra mim?”.
Os por ques sempre têm um porquê. Merecem ser respondidos, devem ser respondidos, com clareza e verdade, para que os pequenos tenham a visão certa das coisas, criem valores, abram seus olhos e seu coração para o mundo, para o outro, para o semelhante e o desigual.
Muitos desses por ques também servem para nos dar um belo “sacode”. É chato ter que olhar o óbvio em nossa frente, ver face a face nossos erros, nossas fraquezas, nossa falta de sensibilidade gritando à nossa frente, batendo em nosso estômago como um soco, após um “por que?” lançado por uma criança.
Adoro a fase do “por que?”, que já me chegou quatro vezes, através de quatro menininhas minhas e lindas. Mesmo quando fiquei muito irritada, tendo que controlar a metralhadora mandando por que, por que, por que, numa velocidade impressionante, e eu me vendo louca, tendo que buscar a resposta mais clara possível para o que não costumamos nos preocupar em explicar.
Mas a fase do “mais ou menos”, “sei lá” e “pode ser” é insuportável. Credo. Ou uma coisa é ou não é. Ou é boa ou é ruim. Ou é feia ou bonita. Ou é claro ou é escuro, frio ou quente, alegre ou triste. Não é mesmo?
Ou alguém quer ou não quer uma coisa. Ou vai ou não vai. Ou serve ou não. Sei lá o escambal. Sei lá...
Pior ainda é quando vem o “pode ser”, que na verdade quer dizer “não pode ser, não dá, não quero, mas vou te cozinhar mais um pouquinho”. Pode ser é o pior, mesmo.
Por isso, vou lançar mão da sabedoria infantil agora, sempre que me jogarem um mais ou menos, pode ser ou sei lá. Criatura terá como troco um belo “por que” e não vale mentir de volta, eu já conheço bem o truque.
Acabo de constatar isso, conversando com amiga, que está na fase do “mais ou menos”, “sei lá” e “pode ser”. Fase chata, já adianto, para aqueles que certamente também deverão experimentá-la.
No por que, tudo é novidade. A gente está como brinquedo novo, que acabou de sair da caixa, olhando tudo em volta com olhos de descobridor. Por isso, não nos aguentamos em meio a tantos rostos desconhecidos, tantos lugares novos, tanto mistério. Desandamos a mandar por ques pra tudo quanto é lado, irritamos pais, tios e irmãos, mas vale a pena.
É por uma boa causa que vivemos as interrogações: para que possamos começar a experimentar a vida. Bom lembrar: nunca devemos nos esquivar dos por ques dos pequenos. Nada de dizer “porque sim”, “porque não”, “porque é assim e pronto”, quando surgirem aquelas perguntinhas básicas: “Mãe, por que a Terra gira e eu não fico tonto?” ou “Por que eu não posso pular da janela?” ou ainda “Por que aquela criança mora na rua e eu tenho um quarto só pra mim?”.
Os por ques sempre têm um porquê. Merecem ser respondidos, devem ser respondidos, com clareza e verdade, para que os pequenos tenham a visão certa das coisas, criem valores, abram seus olhos e seu coração para o mundo, para o outro, para o semelhante e o desigual.
Muitos desses por ques também servem para nos dar um belo “sacode”. É chato ter que olhar o óbvio em nossa frente, ver face a face nossos erros, nossas fraquezas, nossa falta de sensibilidade gritando à nossa frente, batendo em nosso estômago como um soco, após um “por que?” lançado por uma criança.
Adoro a fase do “por que?”, que já me chegou quatro vezes, através de quatro menininhas minhas e lindas. Mesmo quando fiquei muito irritada, tendo que controlar a metralhadora mandando por que, por que, por que, numa velocidade impressionante, e eu me vendo louca, tendo que buscar a resposta mais clara possível para o que não costumamos nos preocupar em explicar.
Mas a fase do “mais ou menos”, “sei lá” e “pode ser” é insuportável. Credo. Ou uma coisa é ou não é. Ou é boa ou é ruim. Ou é feia ou bonita. Ou é claro ou é escuro, frio ou quente, alegre ou triste. Não é mesmo?
Ou alguém quer ou não quer uma coisa. Ou vai ou não vai. Ou serve ou não. Sei lá o escambal. Sei lá...
Pior ainda é quando vem o “pode ser”, que na verdade quer dizer “não pode ser, não dá, não quero, mas vou te cozinhar mais um pouquinho”. Pode ser é o pior, mesmo.
Por isso, vou lançar mão da sabedoria infantil agora, sempre que me jogarem um mais ou menos, pode ser ou sei lá. Criatura terá como troco um belo “por que” e não vale mentir de volta, eu já conheço bem o truque.
Quem partiu já vem | 11:17 |
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“Quem partiu já vem, quem partiu já vem”. O aviso chegava, em meio às arvores do quintal, no muro que cercava a casa e pelas brechas das janelas, enchendo nosso ninho de esperança. Na verdade, tudo que aquele canto fino do pássaro nos dizia mesmo era que algo mudaria naquelas redondezas, no caso, para nós. Era isso, pelo menos, que falava a minha mãe, convicta das suas crenças.
Nós também passamos a acreditar que o bem-te-vi, dono daquele canto e fiel transmissor dos presságios, era profeta.
Aquilo mexia, e ainda mexe, com a gente. O dia parecia ser especial quando ele vinha. As tarefas ganhavam mais sentido, mais urgência. Qualquer coisa saindo um centímetro da normalidade ganhava tom de sinal. E mesmo que nunca uma coisa possa ter sido influência do passarinho, algo sempre acontecia, alguém de longe sempre dava sinal de vida, chegava carta, notícia qualquer de parente ou amigo, renovando as nossas crenças.
Tenho vivido dias de bem-te-vi na janela. Hoje acordei ouvindo um deles, no quintal do vizinho _ que faz reforma interminável em sua casa. Minha alma parece acompanhar a reforma e tomou susto grande com o “quem partiu já vem” ao amanhecer.
Passamos a vida inteira buscando construir sobre bases sólidas, achamos que encontramos o caminho, a rota certa, e investimos o melhor que há em nós nessa aposta, na certeza de que vamos deixar algo impresso _ uma história, uns dias, uns amigos, uns parentes, uns filhos, um trabalho, um livro, um conselho qualquer, um amor.
Cada passo, escolha, renúncia, dinheiro guardado, dinheiro gasto, estrada vencida, sonho plantado. Tudo passa a girar em torno dessa obra a que nos propomos ser autores e que se transforma no sentido de existirmos.
Acordar, levantar, comer, se mover, plantar, respirar. Tudo é agulha e linha na costura desse plano bem traçado, para que a vida seja feliz, plena, dentro do que estabelecemos como a meta principal de estarmos aqui.
Um dia, porém, a obra atrasa. Faltam tijolos, argamassa, concreto, telhas, fios, canos. Falta querência, vontade, sentido. E quando menos esperamos, tudo precisa ser interrompido, a obra fica inacabada e um bem-te-vi bate à janela com o seu “quem partiu já vem”.
Olhei o quintal do vizinho, ouvi o passarinho perambulando lá fora, respirei fundo e fiz as minhas orações da manhã, pedindo a Deus que seja bom presságio esse canto fino, em meio ao inverno rigoroso de agosto.
“Mesmo que a gente chore, maldiga, fique com muita raiva do destino, ele sempre é o dono da verdade. Ele sabe o que faz e o que é melhor para nós. Nunca pense que foi a última vez, que foi o último gole, o último pão. Tudo se repete nessa vida, não importa o cenário ou quem está em cena, para que possamos retomar o nosso caminho”, diria a minha mãe.
Não vou duvidar do que ela me faria acreditar. Ela sempre acertou em tudo. Até nos dias em que nos fazia levantar mais contentes, bendizendo a manhã que chegava com o canto de um bichinho minúsculo, avisando: “Quem partiu já vem, quem partiu já vem”.
Nós também passamos a acreditar que o bem-te-vi, dono daquele canto e fiel transmissor dos presságios, era profeta.
Aquilo mexia, e ainda mexe, com a gente. O dia parecia ser especial quando ele vinha. As tarefas ganhavam mais sentido, mais urgência. Qualquer coisa saindo um centímetro da normalidade ganhava tom de sinal. E mesmo que nunca uma coisa possa ter sido influência do passarinho, algo sempre acontecia, alguém de longe sempre dava sinal de vida, chegava carta, notícia qualquer de parente ou amigo, renovando as nossas crenças.
Tenho vivido dias de bem-te-vi na janela. Hoje acordei ouvindo um deles, no quintal do vizinho _ que faz reforma interminável em sua casa. Minha alma parece acompanhar a reforma e tomou susto grande com o “quem partiu já vem” ao amanhecer.
Passamos a vida inteira buscando construir sobre bases sólidas, achamos que encontramos o caminho, a rota certa, e investimos o melhor que há em nós nessa aposta, na certeza de que vamos deixar algo impresso _ uma história, uns dias, uns amigos, uns parentes, uns filhos, um trabalho, um livro, um conselho qualquer, um amor.
Cada passo, escolha, renúncia, dinheiro guardado, dinheiro gasto, estrada vencida, sonho plantado. Tudo passa a girar em torno dessa obra a que nos propomos ser autores e que se transforma no sentido de existirmos.
Acordar, levantar, comer, se mover, plantar, respirar. Tudo é agulha e linha na costura desse plano bem traçado, para que a vida seja feliz, plena, dentro do que estabelecemos como a meta principal de estarmos aqui.
Um dia, porém, a obra atrasa. Faltam tijolos, argamassa, concreto, telhas, fios, canos. Falta querência, vontade, sentido. E quando menos esperamos, tudo precisa ser interrompido, a obra fica inacabada e um bem-te-vi bate à janela com o seu “quem partiu já vem”.
Olhei o quintal do vizinho, ouvi o passarinho perambulando lá fora, respirei fundo e fiz as minhas orações da manhã, pedindo a Deus que seja bom presságio esse canto fino, em meio ao inverno rigoroso de agosto.
“Mesmo que a gente chore, maldiga, fique com muita raiva do destino, ele sempre é o dono da verdade. Ele sabe o que faz e o que é melhor para nós. Nunca pense que foi a última vez, que foi o último gole, o último pão. Tudo se repete nessa vida, não importa o cenário ou quem está em cena, para que possamos retomar o nosso caminho”, diria a minha mãe.
Não vou duvidar do que ela me faria acreditar. Ela sempre acertou em tudo. Até nos dias em que nos fazia levantar mais contentes, bendizendo a manhã que chegava com o canto de um bichinho minúsculo, avisando: “Quem partiu já vem, quem partiu já vem”.
O melhor presente | 04:37 |
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Desde criança ela quis muito ter o que seria o melhor presente do mundo. Pedia ao pai insistentemente. Fazia as propostas mais difíceis de serem cumpridas _ como ficar sem presente de Natal por toda a vida ou abrir mão do sorvete no fim de semana. Nada adiantava. Aquela casa não era lugar para cachorros.
Tinha raiva da vizinha, que ainda colocava mais lenha na fogueira: “Cachorro só faz sujeira, bagunça tudo, fica doente e ainda foge, deixando todo mundo maluco”.
O que a futriqueira não sabia é que cachorros pulavam alto, brincavam de tudo que se poderia imaginar, não se cansavam de querer agradar, eram amigos como poucos e ainda entendiam os recados silenciosos, se por acaso ela estivesse triste e apenas quisesse ficar quietinha, ali no canto, sem esboçar gesto algum.
Não importava, eles não queriam e pronto. Tantas tentativas em vão a fizeram esquecer o pedido. Um dia, porém, ela cresceu e a aquele sonho ficou possível. Um amigo, sabendo do seu desejo de menina, nem perguntou se caberia ou não cachorro naquela casa. Levou o bichinho, dentro de uma caixa de papelão.
Amor instantâneo, recíproco e arrebatador. “É menina”, disse o amigo. Pretinha, com uma mancha branca minúscula no peito, patas redondinhas e olhar de quem pede: “Me cuida”. Chorava e balançava o rabo, buscava refúgio entre as roupas da nova dona, que quase explodia de tanto querer bem.
Não houve quem não a quisesse. Conquistou todo mundo com aqueles olhos cor de ameixa e o rebolado desajeitado, enquanto tentava se equilibrar sobre as quatro patas. Os pais acabaram se apaixonando também e comprariam qualquer briga para mantê-la em casa. Fiel, acompanhava o pai, todas as noites, quando ele se recolhia, e dormia sobre os chinelos. Ninguém perturbaria o sono. Era a criança, a parceira, ensinando lealdade e afeto aos donos daquela casa.
Um dia a moça precisou ir morar muito longe. Sem despedidas, recomendou cuidados e disse que voltaria logo, para muitas tardes de caminhada à beira-mar e brincadeiras sem hora para acabar. Não pôde cumprir a promessa. Tuca não segurou a distância. Foi deixando de brincar, de atender aos chamados, de comer... e um dia não acordou mais. Morreu de saudade.
A moça pensou na menina, na mãe dizendo não a vida toda, naquele amor imenso que o bichinho lhe fez conhecer e entendeu que não se deve abandonar quem realmente se importa, quem faz a diferença. Nem que seja uma criatura pequena, de quatro patas, andar desajeitado e que só consiga lhe falar com os olhos.
Tinha raiva da vizinha, que ainda colocava mais lenha na fogueira: “Cachorro só faz sujeira, bagunça tudo, fica doente e ainda foge, deixando todo mundo maluco”.
O que a futriqueira não sabia é que cachorros pulavam alto, brincavam de tudo que se poderia imaginar, não se cansavam de querer agradar, eram amigos como poucos e ainda entendiam os recados silenciosos, se por acaso ela estivesse triste e apenas quisesse ficar quietinha, ali no canto, sem esboçar gesto algum.
Não importava, eles não queriam e pronto. Tantas tentativas em vão a fizeram esquecer o pedido. Um dia, porém, ela cresceu e a aquele sonho ficou possível. Um amigo, sabendo do seu desejo de menina, nem perguntou se caberia ou não cachorro naquela casa. Levou o bichinho, dentro de uma caixa de papelão.
Amor instantâneo, recíproco e arrebatador. “É menina”, disse o amigo. Pretinha, com uma mancha branca minúscula no peito, patas redondinhas e olhar de quem pede: “Me cuida”. Chorava e balançava o rabo, buscava refúgio entre as roupas da nova dona, que quase explodia de tanto querer bem.
Não houve quem não a quisesse. Conquistou todo mundo com aqueles olhos cor de ameixa e o rebolado desajeitado, enquanto tentava se equilibrar sobre as quatro patas. Os pais acabaram se apaixonando também e comprariam qualquer briga para mantê-la em casa. Fiel, acompanhava o pai, todas as noites, quando ele se recolhia, e dormia sobre os chinelos. Ninguém perturbaria o sono. Era a criança, a parceira, ensinando lealdade e afeto aos donos daquela casa.
Um dia a moça precisou ir morar muito longe. Sem despedidas, recomendou cuidados e disse que voltaria logo, para muitas tardes de caminhada à beira-mar e brincadeiras sem hora para acabar. Não pôde cumprir a promessa. Tuca não segurou a distância. Foi deixando de brincar, de atender aos chamados, de comer... e um dia não acordou mais. Morreu de saudade.
A moça pensou na menina, na mãe dizendo não a vida toda, naquele amor imenso que o bichinho lhe fez conhecer e entendeu que não se deve abandonar quem realmente se importa, quem faz a diferença. Nem que seja uma criatura pequena, de quatro patas, andar desajeitado e que só consiga lhe falar com os olhos.
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